Nascido há um século e meio no sul da Itália, o crime organizado se tornou um meganegócio global que movimenta cerca de 3 trilhões de dólares por ano e fez do Brasil uma de suas principais bases de operação.
Carlos Amorim
Integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) lideram rebelião em presídio de Sorocaba, em dezembro de 1997.
No verão de 1863, os atores e compositores Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca apresentaram no Teatro Popular de Palermo, na capital da Sicília, uma ópera que marcou época. O espetéculo Il mafiusi de la Vicaria (“Os mafiosos da prisão de Vicária”) revelou a existência de uma organização criminosa chamada Máfia e mostrou como um grupo de homens comandava as atividades criminosas na Sicília de dentro de uma penitenciária. A montagem descrevia também os rituais de iniciação, os esquemas de proteção e extorsão atrás das grades e o código de silêncio – a Omerta – da quadrilha. Um enredo que conhecemos muito bem e que vemos se repetir no Brasil um século e meio mais tarde.
No dialeto siciliano, a palavra máfia queria dizer belo, audacioso, autoconfiante. No entanto, já em 1864, o nobre italiano Nicoló Turrisi Colonna, o barão de Buonvicino, denunciava a verdadeira natureza do grupo em seu livro A segurança pública na Sicília. Segundo ele, a Máfia era uma organização familiar, armada e secreta, surgida na década de 1840. Além da autoproteção e da cobrança de “taxas de funcionamento” a comerciantes e empresários, os criminosos sicilianos controlavam as plantações de limões e laranjas, principal riqueza da ilha. A cada ano, 400 mil caixas de cítricos italianos eram exportadas para os Estados Unidos.
Nas duas primeiras décadas do século XX, além dos limões, a Máfia exportou para a América dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças membros das famílias que fundaram a organização. Em 1930, os mafiosos sicilianos dominavam todas as atividades ilícitas em cidades como Nova York, Seatle, Chicago e Filadélfia. Controlavam a venda e a produção ilegal de bebidas, a prostituição, o jogo e o tráfico de ópio vindo do Extremo Oriente. Em terras do Tio Sam, fundaram a Cosa Nostra (Coisa Nossa).
Um desses jovens e ambiciosos imigrantes era Charles “Lucky” Luciano, nascido na Sicília em 24 de novembro de 1897. Seu nome verdadeiro era Salvatore Lucania e ele organizou e comandou a maior e mais violenta gangue de Nova York (“The Five Points Gang”), especializada em assassinatos por encomenda e cobrança de dívidas. Trabalhava para oscapos da família Genovese, uma das cinco maiores da Máfia nos Estados Unidos, mas não recusava pedidos dos demais chefes do crime, como os Bonanno, os Lucchese, os Gambino e os Colombo. Os Gambino deram origem à trilogia do Poderoso chefão, no cinema, originários que eram da cidade de Corleonne, na Sicília; a família Colombo, por sua vez, inspirou a série de TV Os Sopranos.
Na época, as famílias travavam longas e sangrentas guerras entre si. “Lucky” Luciano não se conformava com essas lutas fratricidas, que considerava uma perda de tempo e de dinheiro. Usando seu prestigio – e suas armas – impôs a criação de uma comissão dirigente na Cosa Nostra, formada por elementos das cinco famílias e capaz de organizar o crime em escala nacional. O comitê existe até hoje.
Visionário, Luciano percebeu que a Máfia podia acompanhar o ritmo acelerado de crescimento dos Estados Unidos. Apostou no controle dos sindicatos de trabalhadores, promovendo ou contendo greves, ganhando dinheiro por meio de filiações, fundos de pensão e extorquindo os capitalistas. Atuando no submundo e nos negócios legais, ele é considerado o “pai” da moderna criminalidade organizada, que se estabelece como empresa.
No início da década de 1950, os Estados Unidos viviam sua “Era de Ouro”, e a Máfia de aproveitou da prosperidade generalizada: faturava centenas de milhões de dólares por ano, não pagava impostos e era tolerada pelas autoridades governamentais. Um dos seus colaboradores mais notáveis era Joseph Kennedy, pai do futuro presidente John Fitzgerald Kennedy. Muitos outros políticos, incluindo governadores e senadores, estavam na folha de pagamento da Máfia.
A prosperidade levou a organização criminosa a investir em outras terras, especialmente no Caribe e na América do Sul. Transformou Cuba na “Disneylândia” do jogo, da prostituição e do tráfico. Colocou dinheiro também nas lavouras de coca na Colômbia e no Peru, inaugurando a etapa dos cartéis da cocaína. O chefe mafioso da operação tinha um nome verdadeiro muito curioso e sugestivo: Johnny Traficantte.
A coisa toda ia muito bem até que Fidel Castro derrubou o governo de Fulgêncio Batista (sócio de Traficantte), expropriou todos os cassinos e acabou com os mafiosos em Havana. A organização criminosa teve um prejuízo de 1 bilhão de dólares em Cuba, e jurou vingança: participou, com a CIA, de oito tentativas de assassinar o líder revolucionário.
Com a morte de Charles “Lucky” Luciano, em 1962, a Cosa Nostra voltou a se dividir: os conservadores queriam continuar com a influência política, o jogo, as mulheres e as bebidas; os “modernos”, no entanto, queriam inaugurar a etapa industrial do tráfico de drogas. E foram eles que ganharam a parada. Nos anos 1960 e 1970, investiram furiosamente nas drogas, assumindo o controle das rotas da heroína do Extremo Oriente para a Europa e da cocaína da América Latina para os Estados unidos e o Canadá.
Um relatório do FBI de 2005 revela que as organizações da Máfia, chamadas de “empresas criminosas” pela polícia federal americana, empregam 250 mil pessoas em todo o mundo. O documento oficial do Departamento de Justiça, assinado por Robert Muller III, então diretor-geral do órgão, informa ainda que tais “empresas criminosas” têm lucro anual de 1 trilhão de dólares. Isso remeteria a um movimento total de 2 ou 3 trilhões de dólares.
O primeiro registro de atuação da Máfia no Brasil data de 1972. O capo mafioso Tommaso Buscheta, o Dom Masino, um dos mais influentes líderes da Máfia siciliana, instalou no litoral de São Paulo a “Conexão Ilha Bela”, destinada a trazer drogas por atacado do porto de Marselha, na França, para os Estados Unidos e o Canadá, passando pelo litoral paulista. Foi preso no Rio de Janeiro, pagou propina, fugiu, foi apanhado novamente pela Polícia Federal e terminou extraditado para a Itália. Durante os anos de chumbo da ditadura militar, as atividades de Tommaso Buscheta não prosperaram. Só uma década depois o crime organizado conseguiria fincar suas garras entre nós.
Na América Latina, um homem poderoso era sócio da Máfia na exportação de cocaína. Em 1982, o megatraficante colombiano Pablo Escobar, chefe do cartel de Medellín, que produzia 60% da cocaína consumida no mundo, decidiu que o Brasil, além de corredor de passagem da droga, poderia se tornar um importante mercado consumidor.
Governado por um general decadente, com um regime militar caindo pelas tabelas, reinando a corrupção e a especulação financeira, o Brasil parecia aos olhos de Escobar um território fértil para implantar o tráfico em níveis comerciais. Com a população concentrada em grandes cidades, uma juventude que despertava de duas décadas de tirania, com uma vida noturna agitada, o país reunia algumas das condições para o consumo de drogas em larga escala.
O traficante entrou em contato com o crime organizado local: os “banqueiros do bicho”, que também tinham um comando unificado, por meio do qual controlavam as apostas, o contrabando, a prostituição, as escolas de samba e as casas noturnas no Rio de Janeiro, São Paulo, Espírito Santo e Bahia. Os grandes “bicheiros”, como Castor de Andrade, Capitão Guimarães e Anísio Abrahão David, no entanto, tinham atividades legais, apoiavam políticos, apareciam na televisão e frequentavam as altas rodas. Como não queriam ser confundidos com traficantes, nossos mafiosos optaram por não se envolver com as drogas.
Das negociações com Pablo Escobar, resultou um acordo por meio do qual um contraventor de segundo escalão, Antônio José Nicolau, o Toninho Turco, fundou uma organização especialmente voltada para o tráfico, uma espécie de interface com o Cartel de Medellín. O problema era: onde colocar as drogas, onde vendê-las? Os melhores lugares, evidentemente, seriam as favelas localizadas na zona sul do Rio e nas proximidades do centro da cidade, onde estariam concentrados os consumidores em potencial.
Essas comunidades pobres, no entanto, estavam sob o controle de uma organização surgida nos porões da penitenciária da Ilha Grande, nos tempos da convivência de presos políticos com detentos comuns nas cadeias da ditadura militar. O nome do grupo era Comando Vermelho (CV). Fortemente influenciado pela opção revolucionária dos anos 1970, o grupo se dedicava ao roubo armado e ao resgate de companheiros presos.
Aos poucos, em virtude de suas ações espetaculares, a organização sentiu o peso da repressão e perdeu alguns dos seus melhores quadros. Nas cadeias, líderes como Willian da Silva Lima, o Professor, fundador do CV e ideólogo da organização, foram substituídos por bandidos como Rogério Lengruber, o Bagulhão, José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, e outros ligados ao tráfico. Estava aberto o caminho para o acordo com Escobar.
Toninho Turco formou uma quadrilha de 90 integrantes, dos quais 61 eram policiais e ex-policiais. Chegou a traficar, junto com o CV, entre 8 e 15 toneladas de cocaína por mês, de acordo com os arquivos da Polícia Federal. A droga era vendida no país ou enviada aos Estados Unidos e Canadá. Toninho foi morto em 11 de fevereiro de 1986, em uma ação conjunta dos federais, do Exército e da polícia estadual do Rio de Janeiro. Seu braço direito, um tenente da Polícia Militar carioca, foi preso, anos depois, em Lugano, na Suíça, durante uma investigação de lavagem de dinheiro.
A morte de Toninho Turco é o fio da meada que nos leva a Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, que o substituiu nas negociações internacionais do tráfico de drogas. Até ser preso na Colômbia, atuando junto ao Bloco 16 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc.
Agora não sabemos mais quem são os nossos criminosos organizados envolvidos com o tráfico em escala comercial. Os próprios colombianos resolveram morar aqui, como Juan Carlos Abadia, o poderoso chefão do Cartel Del Norte, organização que substituiu Pablo Escobar. Ele foi preso pela Polícia Federal, em 7 de outubro de 2007, a partir de pistas reveladas pelo DEA (Drug Enforcement Administration, agência americana de combate ao tráfico), em Aldeia da Serra, bairro de luxo de São Paulo onde vivem artistas de televisão, empresários e gente acima de qualquer suspeita. Abadia foi extraditado para os Estados Unidos em tempo recorde, mandado para uma prisão no estado de Nova York e jogado em uma cela de vidro blindado, de onde jamais sairá.
Desde a criação do Comando Vermelho, após a anistia de 1979, inúmeras organizações do gênero surgiram no país: o Primeiro Comando da Capital (PCC), o CV Nordeste, a Organização Plataforma Armada (OPA) e mais um incontável número de grupos que seguem o exemplo da primeira organização político-militar do crime, o CV. O PCC, de São Paulo, que se intitula o “Partido do Crime”, sinaliza que pretende atuar no cenário político. Em maio e junho de 2006, durante a campanha para presidente, realizou 295 ataques armados contra “alvos” do poder público no estado.
As previsões de Pablo Escobar, de que o Brasil poderia se transformar em um enorme centro consumidor de drogas, se confirmaram. Hoje somos o segundo maior mercado de entorpecentes do mundo ocidental. A Polícia Federal brasileira, entre as dez melhores do mundo, apreende de 8 a 9 toneladas de cocaína por ano, um recorde continental. Em termos de maconha, são 40 toneladas. Das drogas sintéticas, tipo LSD e Ecstasy, quase duas toneladas são interceptadas por ano. Os especialistas no assunto, no entanto, asseguram que as apreensões representam apenas de 10 a 12% do movimento total do tráfico. Faça as contas, leitor, para ver o quanto passa pelas alfândegas e pelas fronteiras.
Esses números mostram que o Brasil se tornou um dos maiores celeiros do crime organizado mundial, com todas as consequêcias que isso traz em matéria de corrupção das instituições, compra de sentenças, punição apenas para os pobres, violência gratuita e banalizada. Na condição de segundo maior consumidor de drogas do mundo ocidental, temos um futuro duvidoso e alarmante.