quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Mia Couto: Murar o Medo




 Conferência em Estoril /2011

Bom,
Nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único convidado nesta e na anterior edição… preciso de um abrigo, preciso de um refúgio… é um texto que vou ler… o presidente tinha dito que eu devia falar espontaneamente… Não sou capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se Murar o Medo.


Murar o Medo
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinaram a recear os desconhecidos. Na realidade a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos.

Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território. O medo foi afinal o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más, propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional. Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência. O preço dessa construção de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.

Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história e, a mais grave dessa longa herança de intervenção externa, é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A guerra fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a oriente e a ocidente e, por que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença. O que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade, imprevisível.

Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas: Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça? Se quisermos resolver e não apenas discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.

Há uma arma de destruição maciça que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra, essa arma chama-se fome! Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo. Mencionarei ainda uma outra silenciada violência. Em todo o mundo uma em cada três mulheres, foi ou será, vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte do nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.

A nossa indignação, porém é bem menor que o medo! Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de ética nem de legalidade. É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha, a Grande Muralha, que foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não há hoje no mundo um muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e dizer: Os que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras e, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe. Muito obrigado!

Fonte: http://airtonbc.wordpress.com/2011/11/10/mia-couto-conferencia-do-estoril2011/

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Diálogos com Zygmunt Bauman



Entrevista exclusiva: Zygmunt Bauman from cpfl cultura on Vimeo.
No último dia 23 de julho, sábado, uma equipe conjunta da CPFL Cultura e do Seminário Fronteiras do Pensamento foi recebida pelo professor Zygmunt Bauman, em sua casa, na cidade de Leeds, Inglaterra. O objetivo era gravar um depoimento para nosso site e para os assinantes do Fronteiras do Pensamento, edição 2011, que conta com parceria da CPFL Energia e de seu programa cultural, a CPFL Cultura. O vídeo de cerca de trinta minutos, que agora está disponível no site, é o primeiro resultado deste encontro e apresenta alguns dos momentos da entrevista concedida por Bauman com exclusividade para o público brasileiro. Outros produtos estão sendo preparados a partir do material coletado e estarão disponíveis ainda neste ano. Acompanhe aqui em nosso site as informações. Fonte: http://www.cpflcultura.com.br/site/2011/08/16/dialogos-com-zygmunt-bauman/

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Brasil precisa de mais engenheiros (IPEA)


Brasil precisa de mais engenheiros
26/03/2010
Meta demanda que o País dobre o número de formados na área

Para 2014, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) definiu como meta formar 100 mil engenheiros, o que significa mais do que dobrar o número de formandos de 2008. Afinal, técnicos ou tecnólogos não entram nessa conta e o Censo da Educação Superior do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) indica que, no ano de referência, formaram-se nas diversas especialidades da engenharia 47.098 profissionais. 

Parte da responsabilidade pela meta está nas mãos da comissão formada pela Capes com o objetivo de propor ações indutoras e estimular o desenvolvimento da pesquisa, da pós-graduação, da produção científica e da inovação tecnológica nesta área do conhecimento. Para Sandoval Carneiro Júnior, presidente da comissão e diretor de relações internacionais da Capes, a taxa de formação de engenheiros no Brasil é inferior à de outras nações. "Dos países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil é o que menos forma engenheiros. A Rússia forma 190 mil por ano, a Índia 220 mil e a China 650 mil", diz ele com base em dados de documento elaborado pela comissão e entregue ao ministro da Educação, Fernando Haddad.
Para a indústria, a escassez de engenheiros é um fato preocupante desde 2008. "Mesmo com a recessão em 2009, setores como a construção tiveram demanda além do esperado. Não só não houve desemprego de engenheiros como os salários, em média, aumentaram 20%", afirma Marcos Maciel Formiga, representante da CNI (Confederação Nacional da Indústria) e membro da comissão da Capes. Para ele, se a taxa de crescimento econômico continuar acima de 5%, haverá necessidade de duplicar o número de engenheiros formados anualmente. 

Segundo Carneiro Júnior, um dos riscos imediatos da falta de mão de obra qualificada é o de encarecimento do setor produtivo. Ele acredita que as empresas passarão a buscar profissionais estrangeiros, a custos elevados e com a exigência de adaptação do conhecimento técnico à realidade local. Além disso, intensifica-se a dependência brasileira de inovação tecnológica. "O Brasil entra numa fase de crescimento e precisamos sair do modelo econômico baseado na exportação de materiais primários e commodities, cujo valor agregado é pequeno", alerta Carneiro Júnior. De acordo com ele, para mudar esse quadro, é necessário contar com profissionais capazes de desenvolver inovação tecnológica. 

Combate à evasão
 
Carneiro Júnior é contundente ao afirmar que o principal desvio é a evasão universitária, tendo sido o que motivou a Capes a criar a comissão. Segundo dados por ele apresentados, a evasão, mesmo em IES (instituições de Ensino Superior) públicas chega a 60% e atinge 75% em entidades particulares. "Vagas temos de sobra. Em 2007, 450 mil alunos se inscreveram para 198 mil vagas de engenharia, mas dessas, apenas 115 mil foram preenchidas. Sobraram 80 mil ociosas", diz. 

A mesma opinião tem o professor Alexandre Pacheco, coordenador da comissão de graduação da escola de engenharia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) onde, afirma, apenas no curso de Engenharia Civil, todos os anos são oferecidas 175 vagas, com ingresso de cerca de 150 alunos. Segundo ele, apenas em torno de 80 chegam a se formar. "O pessoal tem muita dificuldade nos primeiros dois anos, quando a evasão é pronunciada", declara Pacheco. Um dos motivos para a evasão seria o perfil estritamente acadêmico do ciclo básico a maior responsabilidade. "Depois que entra na parte profissionalizante, o pessoal costuma engrenar, faz estágios e iniciação científica", acrescenta ele.
Vestibular

Vagas Oferecidas
Ingressos
Concluintes
2005
148.080
89.030
36.918
2008
239.134
140.878
47.098
Fonte: Censo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)

A suposta responsabilidade pelas falhas que levam à evasão divide-se entre o Ensino Médio e as faculdades. O primeiro respondia pelas deficiências na área de exatas. Tanto que na UFRGS foi criado um programa para detectar alunos com dificuldades nas áreas de física e matemática. Eles são encaminhados para curso preparatório de recuperação. "Modificamos os critérios de recusa de matrícula devido à má performance, o que culminava com a saída do aluno do curso", revela o coordenador.
A própria CNI, por meio do programa Inova Engenharia, atua no Ensino Médio para estimular estudantes a optarem pela engenharia. "Apenas um aluno dentre 700 optará pela engenharia. Não temos como conviver com essa realidade. Então essa mobilização vai tentar sensibilizar a sociedade para a importância desse profissional", conta Formiga, superintendente da CNI. 

Já às universidades caberia a responsabilidade por modernizar currículos e torná-los mais atraentes aos alunos a partir do estímulo à aplicação prática dos conceitos nos primeiros anos sem comprometer a base científica. Essa é a opinião de Carneiro Júnior, para quem a questão é amenizar a aridez da teoria por meio da iniciação cientifica, com engajamento em projetos práticos de laboratório. 

A fim de complementar a estratégia de atração e retenção de alunos nos cursos de engenharia, Formiga acredita ser necessário pensar na questão financeira, tanto com relação às mensalidades quanto sob o aspecto dos salários. "Os cursos são difíceis e as faculdades particulares caras. Os alunos vão para as áreas de humanas e sociais, que também abrem chance de prestar concurso", analisa ele. Um dos caminhos sugeridos por Carneiro Júnior para atenuar o problema seria desenvolver um programa de ajuda de custo, não reembolsável, para IES comunitárias com bom desempenho no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). "Durante muito tempo, os salários da engenharia foram baixos o que, aliado à necessidade de investir durante cinco anos em muito estudo, afastou os alunos", argumenta o coordenador. 

Omissão tecnológica
 
O viés cientificista da educação no Brasil é apontado por Formiga como um dos fatores responsáveis pelo achatamento dos salários de engenheiros. Isso porque os investimentos por parte da indústria em tecnologia seriam escassos. "Estamos mais preocupados com ciência do que com tecnologia. E engenheiros são mais tecnologistas. No, o registro de patentes chega a 400 ou 500 por ano. No mesmo período de análise, a Coréia registrou dez vezes mais patentes do que nós", compara ele. 

Dados da pesquisa Inova Engenharia 2008
Propostas para a modernização da educação em engenharia no Brasil

Engenheiros contratados por porte (número de funcionários)
Descrição
Até 49
50-249
250-499
500 ou mais
Total
%
Ramos que empregam os primeiros 49,2% do total de engenheiros
21.930
30.267
16.542
60.086
128.825
49,2%
Construção
7.655
6.468
2.291
2.679
19.093
14,8%
Serviços prestados principalmente às empresas
3.909
5.018
2.732
4.929
16.588
12,9%
Administração pública, defesa e seguridade social
176
1.652
1.414
10.365
13.607
10,6%
Eletricidade, gás e água quente
450
1.421
598
5.218
7.687
6,0%
Fabricação e montagem de veículos automotores, reboques e carrocerias
104
685
740
4.880
6.409
5,0%
Total de Engenheiros
34.224
45.511
24.317
88.157
192.209
49,2%

Ramos que empregam os próximos 26,5% do total de engenheiros
Até 49
50-249
250-499
500 ou mais
Total
%
Correio e telecomunicações
470
1.267
734
3.412
5.883
4,6%
Fabricação de máquinas e equipamentos
945
1.596
622
1.810
4.973
3,9%
Captação, tratamento e distribuição de água
211
790
555
2.285
3.841
3,0%
Fabricação de outros equipamentos de transporte
44
140
27
3.394
3.605
2,8%
Fabricação de produtos químicos
360
1.327
953
927
3.567
2,8%
Fabricação de coque, refino de petróleo, elaboração de combustíveis nucleares
22
170
247
2.840
3.279
2,5%
Comércio por atacado e representantes comerciais e agentes do comércio
1.374
1.031
370
451
3.226
2,5%
Metalurgia básica
100
291
301
2.290
2.982
2,3%
Fabricação de máquinas, aparelhos e materiais
321
591
791
1.122
2.825
2,2%
Total de Engenheiros
3.847
7.203
4.600
1.122
34.181
26,5%
Fonte: Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) / IEL (Instituto Euvaldo Lodi)
 
Para essas afirmações, Formiga tomou como base o documento desenvolvido pelo programa Inova Engenharia, que aponta que apenas um terço dos engenheiros permanece no trabalho em sua área de formação. De acordo com o Sumário analítico Mercado de Trabalho para o Engenheiro e Tecnólogo no Brasil, desenvolvido pela CNI, "do total de engenheiros empregados (...) quase metade está concentrada em cinco ramos de atividade, sendo que dois deles estão em áreas não diretamente relacionadas à produção. Um é o ramo de serviços prestados principalmente às empresas (...). O outro é a administração pública, defesa e seguridade social, ou seja, órgãos do governo". 

Dentre os fatores que fazem com que engenheiros migrem para outros setores, Formiga aponta os melhores salários. "Nada melhor que o setor financeiro para engenheiros, onde exercem suas capacidades e recebem melhor", resume. Para ele, embora esse fenômeno mostre o aspecto positivo referente à polivalência desses profissionais, também revela um aspecto preocupante. "Queremos que o setor empregue mais engenheiros em atividades de engenharia. Com competitividade acirrada, não se sobrevive sem inovação e engenharia é fundamental", diz ele. 

O aumento dos salários nas áreas diretamente ligadas à engenharia voltaria a atrair profissionais já formados e alocados em outras áreas e atenuariam o risco de escassez. A possibilidade é apontada no artigo "Escassez de engenheiros: realmente um risco?". "Temos 750 mil engenheiros formados e usamos como engenheiros apenas 211 mil. Se houver demanda efetiva, os salários sobem e o pessoal para de ir para o outro lado", atesta Gusso. 

Assim, a valorização do engenheiro na indústria passa pela mudança de suas funções principais. Para Carneiro Júnior, muitos profissionais utilizam apenas nível técnico de conhecimento, envolvidos com adaptação de projetos às condições locais. "A indústria tem de participar com recursos e definição de prioridades e aumentar a quantidade de estágios de qualidade, que contribuam para a formação", afirma o diretor de relações internacionais da Capes. Condição atestada também pelo Sumário analítico da CNI, que indica que "quando se trata do elemento cada vez mais crítico da inovação, os engenheiros são considerados adequados apenas na adaptação da inovação, ficando um pouco abaixo no conhecimento e na implantação e significativamente abaixo na geração de inovação". 

As possibilidades da indústria para contribuir com a formação profissional envolvem o aproveitamento da polivalência do profissional de engenharia citada por Formiga, o que é explorado com a criação de universidades corporativas. "O profissional bem formado é exigido e, por meio da universidade corporativa, forma-se a especificidade. O profissional, quando bem formado se adapta às novas situações", ressalta o representante da CNI. 

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CONTO: A Gaiola de Vidro


A Gaiola de Vidro
Magna Campos
“É necessário sair da ilha para ver a ilha.
Não nos vemos se não saímos de nós”
 (José Saramago. In:
O Conto da Ilha Desconhecida)

“E nenhum Grande Inquisidor tem prontas tão terríveis torturas como a ansiedade tem;
 e nenhum espião sabe como atacar mais inteligentemente o homem de quem ele suspeita, escolhendo o instante em que ele está mais fraco; ou sabe onde colocar armadilhas em que ele será pego e enredado, como a ansiedade sabe; e nenhum juiz é mais esperto e sabe interrogar melhor, examinar, acusar como a ansiedade sabe, e nunca deixa a vítima escapar, nem através de distrações, nem através de barulhos, nem divertindo, nem brincando,
nem de dia, nem de noite..."
(Soren Kierkegaard. In: O Conceito de Angústia)


Certa manhã, acordou disposto. Aquilo lhe parecia tão surreal que sentiu uma tontura leve ao se levantar da cama.
Já nem se lembrava mais de há quanto tempo não acordava antes das oito da manhã, que não fosse para ir ao banheiro e voltar para o ninho isolador das perturbações e desmaiar-se num não-sono dopado de calmantes e ansiolíticos.
Mal do novo século ou não, o fato é que, há mais de dois anos, abatera sobre ele uma terrível sensação de desrealização e de angústia, aliadas à uma taquicardia repentina, promotoras de episódios intermináveis de choro sem motivos aparentes, que o levaram a uma peregrinação a vários médicos especialistas. A cada novo exame entregue, a esperança de saber o que havia de errado com sua saúde e o que era possível fazer para “consertá-la” o mais rapidamente possível.
Pena sempre ouvir o mesmo laudo inacreditavelmente idêntico em seu teor aos demais: tudo bem com seu coração, não encontrei nenhuma anomalia; ... tudo bem com seu estômago, vesícula, pâncreas e fígado, não encontrei nenhum problema com eles; ... com seus pulmões, uma maravilha; ...nenhum problema neurológico ou circulatório, tudo bem com você...
Mas, como tudo bem? Não, não estava nada bem, meu Deus!
Mal conseguia manter-se de pé no trabalho, e, mesmo assim, experimentando as piores sensações já vividas nas, agora, longuíssimas jornadas semanais. Carregava-se sofridamente ao longo dos dias, parava constantemente para colocar as mãos no peito e tentar acalmar o coração acelerado, que resolvia disparar, sufocando-o.
Pior mesmo era ter de trancar-se no banheiro da repartição e chorar o choro mais doído que já lhe ocorrera. Era não conseguir ordenar àquele dilúvio todo que findasse. E, nesses momentos, chorava... como uma mãe amorosa chora ao perder o seu bebê para a morte. Mas ele... Ele não havia perdido ninguém, por que então aquela dor incompreensível e desesperadora lhe tomava? O que estava acontecendo consigo? E por que as “porcarias” dos médicos não encontravam o que havia errado em seu organismo? Também, revoltava-lhe o fato de ter tantos especialistas em mindinhos, mas não ter mais o especialista da mão toda.
O plano de saúde já começara a “vetar” a liberação de alguns exames, com restrição de quantidade anual, devido aos inúmeros feitos no último mês.
Um dia, ao sair para o trabalho, apressado como sempre, Affonso sentiu uma dor aguda no peito. Mesmo assim, prosseguiu até o ponto de ônibus e tomou a condução para o trabalho, mas precisou parar antes. Não suportou o abafamento e as dores que lhe deixaram zonzo. Na calçada, ao descer, sentou-se. Vendo que não havia recurso, caminhou com dificuldade até uma farmácia próxima e pediu algo para aliviar seu mal-estar.
O farmacêutico vendo que poderia ser algo mais grave, já que Affonso reclamava pontadas no peito, chamou uma ambulância e o aconselhou a ir para um hospital.
As dores o sufocavam, seu estômago estava mareado e a boca muito seca. Affonso sentia uma aflição danada em fechar os olhos, pois sentia a morte eminente...
No hospital, feito alguns exames e constatado que não havia nada errado com seu coração, nem nos exames laboratoriais de emergência, o médico indicou ao rapaz que procurasse pelo Dr. Paulo dos Santos, neurologista e especialista em depressão.
Aquilo lhe caíra como uma verdadeira bomba. Jamais acreditara que depressão fosse uma doença, ainda mais que ocorresse com pessoas normais, sempre tendeu a acreditar que era um mal que afetava só às pessoas mais frágeis psicologicamente, ou às que não tinham equilíbrio mental, ou, então, às apáticas por natureza. No fundo, depressão mais lhe parecia, até aquele momento, uma fraqueza e não uma doença de fato.
Talvez por esse seu pré-conceito desconhecedor da verdade sobre a doença, tão mal compreendida no senso comum, não aceitara a indicação do plantonista que lhe socorrera no hospital.
Dois dias depois, ao retornar do trabalho, sentia-se tão mal que se deitou de terno e gravata, tal qual chegara. Chorou até os ouvidos se tamparem de tanta pressão pelo inchaço da narina e dos olhos. Aquela foi sem dúvida a pior noite de sua vida, desde sempre. Era pouco mais de 08:00h da manhã, quando desesperado, ligou para o telefone do médico que lhe fora indicado e chorou implorando um horário ainda naquele dia.
A secretária retornou a ligação pouco depois e disse que havia conseguido uma consulta emergencial para ele no fim da tarde. Avisou ainda que aquele médico só atendia na modalidade particular, pois era muito solicitado. E que também era preciso levar outros exames realizados recentemente, caso os tivesse. Antes de desligar, porém, a secretária o inquiriu: _ O senhor tem condições de vir sozinho?
Affonso respondeu inseguro que sim, tinha, e que pagaria o que fosse necessário, mas precisava de um alívio para o mal que estava o matando. Desligado o telefone, sentiu-se tão agoniado, não sabia se resistiria até à hora da consulta. Suas dores eram imensas e o abafamento trazido pela angústia sufocava-o, fazendo os minutos parecerem horas, tão longo se aparentavam.
No consultório do Dr. Paulo dos Santos, entrou um verdadeiro trapo humano: um homem que mal conseguia explicar o que sentia sem chorar sofridamente. Entregou a grande pasta com todos os exames que havia realizado no último mês e pediu: _ Doutor, pelo amor de Deus, me cure! Não aguento mais isso.
Depois de alguns exames, ali mesmo no consultório o médico constatou:
 _ Pelo que você me relatou, Sr. Affonso, e pelos sintomas que tem apresentado, eliminadas as outras possibilidades clínicas, creio tratar-se de um quadro de estresse avançado que culminou numa depressão já bastante notável.
Desta vez não se aguentou, desabou ali mesmo, na sala do médico. _ Como assim, depressão, doutor? Sou um cara novo, tenho boa estrutura mental, sempre tive boa saúde, trabalho muito.
Foi então que o médico – destes saídos diretamente da ficção – pacientemente lhe explicou de forma científica o que era a depressão, doença que se deve, em alguns casos, aos distúrbios nas substâncias químicas produzidas pelo organismo, afetando os neurotransmissores, e o que ela poderia provocar no organismo da pessoa, sendo esta jovem ou velha, homem ou mulher.
Fatigado pela busca por uma resposta e frente a uma aparente realidade, Affonso rendeu-se, talvez um pouco revoltado, ao tratamento proposto: doses diárias de calmantes e outras de ansiolíticos...
Bom seria se todas as gaiolas invisíveis que nos prendem, fossem abertas assim: rápida e mecanicamente. Mas as engrenagens dos portões e celas humanos são muito mais complexas que as mais sofisticadas tecnologias artificiais.
Os remédios, mesmo em altas doses, aliviavam um pouco as dores no peito, a taquicardia, a sensação de não-existência. Mas o alívio momentâneo seguia-se de uma expansão da tristeza e da melancolia que o absorviam por completo.
Seu cansaço existencial era imenso e ainda o perturbava, sentia vontade de morar de vez na cama e de acabar-se ali. As coisas mais banais da vida tornaram-se pesos e frustações. Não havia mais dia e noite, havia angústia, simplesmente! Sentia-se ainda vivo, mas fracamente vivo.
E as crises de choro?
Essas, só souberam aumentar com o tempo. Envergonhava-se de não se conter, de ter se tornado um “maricas” sem causa, tamanho a choradeira. Por isso, afastara-se de todos a sua volta, isolara-se, mesmo em meio à multidão. A única pessoa que o via era a faxineira, duas vezes por semana, mesmo assim, mal se falavam. Ele... trancado no quarto escuro a maior parte do tempo.
Não lhe importava mais se era domingo, terça ou qualquer outro dia da semana. Todos eram longuíssimos e perturbadoramente angustiantes. A essa altura, obviamente, incapacitado para o trabalho, vivia do benefício salarial pago pelo pedido de afastamento de suas funções. Pelo menos aqui, esse benefício foi concedido...
Naqueles duros dias-noites de sofrimento, não foram poucas as vezes em que desejou exterminar a sua própria vida. E tentara... não fosse a faxineira encontrá-lo desacordado pela manhã e chamar a emergência...o desespero captaria mais um na multidão.
Nada mais fazia sentido, tudo que mais prezava fora-lhe saindo aos poucos das lembranças e das alegrias. O pessimismo o inquiria pelo seu fracasso, pela sua fraqueza, pela sua incapacidade de enfrentar à vida. Sentia-se um ridículo aleijão humano.
No espelho, a figura de um homem abatido, envelhecido, fraco e triste... tão diferente do rapaz altivo e bem apessoado da foto, acima do espelho, que era ele mesmo, apenas alguns anos antes. Sentia-se um espectro de gente!
Foram muitas as tentativas de tratamento. Experimentara vários tipos de calmantes e de ansiolíticos... Alguns um tanto promissores, outros ainda mais terríveis em seu organismo. Mas sempre ligado a eles, pois, de alguma forma, os comprimidos eram a sua única fonte de alívio, ainda que por curtos intervalos. Sem eles, a vida se tornaria impossível naqueles tempos de tortura intensa.
Felizmente, o moinho do tempo não para, e assim como engole o que é bom, engole também o que é mau, e eis que aquela manhã havia algo de diferente. Acordara de verdade, e até conseguia ouvir o barulho dos carros lá na rua. Nem mais se dava conta, há muito, de nada que fosse exterior, pois durante todo aquele tempo que “frequentou” o seu próprio velório, encerrado pela doença, em seu quarto-mundo-reduzido, perdera a noção do lá fora.
Passada a vertigem que a retomada da percepção do mundo causara-lhe, sentiu vontade-de-ver-e-sentir-o-sol. Foi então que abriu as cortinas – também se esquecera de que seu apartamento tinha janelões de vidro –, e arreganhou as vidraças, colocando toda a sua cabeça para ser inundada pela brisa fresca daquela manhã ensolarada. Gostou tanto da sensação que pareceu ter o sol só para si.
O ar em seus pulmões ardia-lhe de tão fresco. Deixou-se sentir àquela experiência tão simples e tão distante, abriu todos os seus sentidos, espreitou os ouvidos, rompeu a muralha, depois de tanto tempo só conseguindo olhar para dentro, para a escuridão que se lhe abatera, cego à própria cegueira.
Lá embaixo na rua, o rapaz que entrega gás tocava sem parar o interfone do prédio ao lado. O ônibus, no ponto abaixo, abarrota-se ainda mais de gente, e segue como uma lata de sardinha humana. As pessoas seguiam apressadas sabe-se lá para onde e por que razão.
No relógio, são 07:47h da manhã de quinta-feira, 22 de maio de 2010. Exatamente, dois anos, três meses e sete dias depois de sentir-se tomado pela angústia sufocante, pelo coração aflitivamente disparado e de ter tido a sua primeira crise, incontrolável, de choro.
Finalmente, a gaiola de vidro abrira-se...