Ms. Magna Campos
A modernidade líquida, termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para nomear a era atual, denominada por alguns de pós-modernidade e por outros de hipermodernidade, é a fase em que tudo aquilo que era sólido e estático se derreteu ou está se derretendo, não para formar novos sólidos – já que não se prende ao tempo e não se fixa espaço – mas para fluir liquefeito pelas novas vias que se lhe apresentam ou que vão sendo configuradas numa sociedade que se transmuda a todo instante.
A metáfora da liquidez advém da observação de que
os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”. (BAUMAN, 2001, p.8) grifos do autor
É essa extraordinária mobilidade dos fluidos que os associa à ideia de leveza. Pois, é possível associar leveza à mobilidade e à inconstância. Dessa forma,
descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas. Os fluidos se movem facilmente. Eles "fluem", "escorrem", "esvaem-se", "respingam", "transbordam", "vazam", "inundam", "borrifam", "pingam"; são "filtrados", "destilados"; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são alterados - ficam molhados ou encharcados. (BAUMAN, 2001, p.8) grifos do autor
Sendo assim, a metáfora do líquido é escolhida por Bauman para designar a nossa era, uma vez que capta a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade. Uma fase em que tudo é fugaz, transitório, múltiplo, heterogêneo e fragmentado.
O sinal digital que fluidifica espaços e bits e os transmite em questões de segundo passa a ser o exemplo máximo da inexorabilidade do espaço e da presencialidade do agora em nossas vidas.
Nessas configurações, no século XXI, a produção artística e suas linguagens também estão submetidas a esses imperativos socioculturais, nos quais a incerteza e a transitoriedade atravessam-na. Na liquefação, desvanece a distinção entre o novo e o conhecido, e o gesto de criar e o de destruir passam a fazer parte de uma mesma moeda, já que a ideia de imobilidade aterroriza por decretá-la candidata ao esquecimento e ao abandono.
A ideia da liquidez faz fundir o tradicional e o não tradicional e daí surgir um híbrido que não é um ou outro, mas um e outro ao mesmo tempo, imiscuído numa linguagem líquida e movente. A discussão entre o valor estético de uma obra agora se mescla à função desta obra, sem diminuir-lhe ou agregar-lhe valor. Simplesmente, configuram uma nova sintaxe, que por ser híbrida, carece de novas categorias de análise que se pautem naquilo que une e não naquilo que separa. A singularidade está no hibridismo e não na separação entre a vanguarda e a contemporaneidade.
Há uma tendência das produções artísticas de centrarem-se nos acontecimentos passageiros, por isso efêmero. E o poema líquido-moderno não contraria essa tendência que é fruto de seu engajamento em seu tempo, ou melhor, nas fragmentações de tempo de nossa era.
Mas o que seria esse poema líquido-moderno?
Talvez, a indefinição seja a melhor das respostas, uma vez que o líquido não permite mais do que conformações momentâneas, antes que assuma nova forma. Mas se poderia tentar designá-la como um poema que consiga envolver as características da liquidez não apenas em sua condição de produção, como também em sua linguagem. Que o seu dizer-fazer seja sua própria definição.
Tem-se assim, em nosso ponto de vista, um exemplo máximo dessa sintaxe líquido-moderna naquele que figura no novo estilo poético intitulado, por seus proponentes, de Aldravia.
A Aldravia conceituada no Jornal Aldrava, onde foi primeiramente publicado, como se tratando de
um poema sintético, capaz de inverter ideias correntes de que o poema está num beco sem saída. O poema é constituído numa linométrica de até seis palavras-verso. Esse limite de seis palavras se dá de forma aleatória, porém preocupada com a produção de um poema que condense significação com um mínimo de palavras [...] (DONADON-LEAL, 2010, n. 88, p. 3)
Já nessa conceituação, podem-se pinçar algumas influências da modernidade líquida na caracterização poética.
Apresentam-se a ideia da condensação da linguagem e das ideias, pois numa sociedade movente, é preciso ser e tornar-se leve, desfazer-se de tudo que atravanque a mobilidade; é preciso “dinamitar” o espaço para ganhar “tempo”, que é sempre escorregadio, que é sempre não mais que um instante.
Também, têm-se a aleatoriedade das palavras e de sua organização, pois as palavras que já se dizia há muito que “desmanchavam-se no ar”, agora “escorrem”, “esvaem-se”, “transbordam” e “inundam” com grande facilidade o texto em que se apresentam.
No encontro de um possível obstáculo “o poema estaria num beco sem saída”, dissolve o poema tradicional e o reconfigura com uma roupagem mais atual.
Outra característica da aldravia, que proporia como característica líquido-moderna deste tipo de poema, refere-se ao fato de, aparentemente, afastar-se da representação como “fotografia”, que fixa e congela a cena no momento e no espaço, para aproximar-se do vídeo digital, capaz de captar e de em milésimos de segundos transformar em movimento, em fluidez. Observe-se essa tendência nas Aldravias a seguir:
se
sol
lá
noite
aqui
Andreia D. Leal
salto
de
cova
nascimento
do
artista
Andreia D. Leal
sigo
cigano
em
busca
da
poesia
JS Ferreira
Nos poemas acima, as minúsculas e a ausência de pontuação podem “confundir” nossos sentidos, pois não encontramos as habituais marcações de onde inicia – faltam as iniciais maiúsculas, que já nos convencionamos a encontrar no início de um texto – e faltam os pontos finais – que sinalizaria o seu término. Sinalizando mais para o fluxo e para o entremeio discursivo, do que o início e o fim, propriamente dito.
Além disso, a condensação de significados em poucas palavras evoca à produção de sentidos em caleidoscópio e não na linearidade, pois alude ao movimento e não a estaticidade de uma cena. Diria que condensam linguagens do tempo, fluidificando imagens, fotos, em fluxos contínuos. Fluxos de signos. Condensação propositadamente aludida em:
aldravia
meu
verso
universo
em
poesia
Gabriel Bicalho
É deixada ao leitor a provocação e não a mensagem. Por isso, um poema metonímico e não metafórico. A abertura final é parte de sua concepção.
Aliás, a metonímia também seria uma ideia bastante apropriada para a era líquido-moderna, uma vez que a fragmentação se apossou das pessoas, do tempo e dos espaços. Pois como propõe o próprio Bauman, no livro Identidade, ter uma identidade fixa hoje, nesse mundo fluído, seria de certo modo uma decisão suicida. Estamos na era da construção múltipla de eus. E novamente, ilustro essa fragmentação com outra aldravia:
minhas
porções
diárias
metonímias
de
mim
J.B. Donadon-Leal
A novidade aqui não está, apoiando-me em Santaella (2007, p.97), no fato da identidade ser múltipla, pois a identidade humana é, por natureza, múltipla. A novidade está, isso sim, em tornar essa verdade evidente e na possibilidade de encenar e de jogar com ela até o limite máximo da transmutação.
É a nudez do poema como “supersigno” da linguagem que me parece buscar-se na modernidade líquida. Nesse contexto, a aldravia parece despir-se diante dos olhos do leitor, para recompor-se em sua mente. Para daí, novamente desmanchar-se, fluir num movimento incessante.
Essa liquidez apresenta como essência o movimento, contínuo e incessante. O movimento perpétuo, a liquidez fugidia que não se permite fixar, pausar. Se há liquidez é porque há movimento, de todos os tipos, pois, como afirma o próprio Bauman, o lugar, na modernidade líquida, perdeu sua fixidez de antes, “buscando rochas, as âncoras encontram areias movediças” (BAUMAN, 2001, p.70).
Esses poucos exemplos servem para apontar, ainda que modestamente, o quanto a linguagem é versátil e o quanto as condições socioculturais e históricas fazem parte da instauração de cada “novo” discurso, seja ele poético ou não. E assim, mostram-nos o quanto a leitura e a escrita estão imersos em seu tempo e são engendrados e engendrantes por/de ele.
Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Editora Zahar, 2001.
______. Identidade. São Paulo: Editora Zahar, 2005.
SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
DONADON-LEAL, J. B. Aldravia – nova forma, nova poesia. Jornal Aldrava. Mariana, ano XI, n. 88, p.3, dez./2010.
Aldravias. Jornal Aldrava. Mariana, ano XI, n. 88, dez./2010.
Texto publicado no Jornal Aldrava ISSN: 1519-9665 - Periódico indexado.: http://www.jornalaldrava.com.br/N92_Jul_Ago_2011/N92_Jul_Ago_2011.pdf