A Gaiola de Vidro
Magna Campos
“É necessário sair da ilha para ver a ilha.
Não nos vemos se não saímos de nós”
(José Saramago. In:
O Conto da Ilha Desconhecida)
“E nenhum Grande Inquisidor tem prontas tão terríveis torturas como a
ansiedade tem;
e nenhum espião sabe como atacar
mais inteligentemente o homem de quem ele suspeita, escolhendo o instante em
que ele está mais fraco; ou sabe onde colocar armadilhas em que ele será pego e
enredado, como a ansiedade sabe; e nenhum juiz é mais esperto e sabe interrogar
melhor, examinar, acusar como a ansiedade sabe, e nunca deixa a vítima escapar,
nem através de distrações, nem através de barulhos, nem divertindo, nem
brincando,
nem de dia, nem de noite..."
(Soren Kierkegaard. In:
O Conceito de Angústia)
Certa
manhã, acordou disposto. Aquilo lhe parecia tão surreal que sentiu uma tontura
leve ao se levantar da cama.
Já
nem se lembrava mais de há quanto tempo não acordava antes das oito da manhã,
que não fosse para ir ao banheiro e voltar para o ninho isolador das
perturbações e desmaiar-se num não-sono dopado de calmantes e ansiolíticos.
Mal
do novo século ou não, o fato é que, há mais de dois anos, abatera sobre ele
uma terrível sensação de desrealização e de angústia, aliadas à uma taquicardia
repentina, promotoras de episódios intermináveis de choro sem motivos aparentes,
que o levaram a uma peregrinação a vários médicos especialistas. A cada novo
exame entregue, a esperança de saber o que havia de errado com sua saúde e o
que era possível fazer para “consertá-la” o mais rapidamente possível.
Pena
sempre ouvir o mesmo laudo inacreditavelmente idêntico em seu teor aos demais:
tudo bem com seu coração, não encontrei nenhuma anomalia; ... tudo bem com seu
estômago, vesícula, pâncreas e fígado, não encontrei nenhum problema com eles;
... com seus pulmões, uma maravilha; ...nenhum problema neurológico ou
circulatório, tudo bem com você...
Mas,
como tudo bem? Não, não estava nada bem, meu Deus!
Mal
conseguia manter-se de pé no trabalho, e, mesmo assim, experimentando as piores
sensações já vividas nas, agora, longuíssimas jornadas semanais. Carregava-se sofridamente
ao longo dos dias, parava constantemente para colocar as mãos no peito e tentar
acalmar o coração acelerado, que resolvia disparar, sufocando-o.
Pior
mesmo era ter de trancar-se no banheiro da repartição e chorar o choro mais
doído que já lhe ocorrera. Era não conseguir ordenar àquele dilúvio todo que
findasse. E, nesses momentos, chorava... como uma mãe amorosa chora ao perder o
seu bebê para a morte. Mas ele... Ele não havia perdido ninguém, por que então
aquela dor incompreensível e desesperadora lhe tomava? O que estava acontecendo
consigo? E por que as “porcarias” dos médicos não encontravam o que havia
errado em seu organismo? Também, revoltava-lhe o fato de ter tantos
especialistas em mindinhos, mas não ter mais o especialista da mão toda.
O
plano de saúde já começara a “vetar” a liberação de alguns exames, com
restrição de quantidade anual, devido aos inúmeros feitos no último mês.
Um
dia, ao sair para o trabalho, apressado como sempre, Affonso sentiu uma dor
aguda no peito. Mesmo assim, prosseguiu até o ponto de ônibus e tomou a
condução para o trabalho, mas precisou parar antes. Não suportou o abafamento e
as dores que lhe deixaram zonzo. Na calçada, ao descer, sentou-se. Vendo que
não havia recurso, caminhou com dificuldade até uma farmácia próxima e pediu
algo para aliviar seu mal-estar.
O
farmacêutico vendo que poderia ser algo mais grave, já que Affonso reclamava
pontadas no peito, chamou uma ambulância e o aconselhou a ir para um hospital.
As
dores o sufocavam, seu estômago estava mareado e a boca muito seca. Affonso
sentia uma aflição danada em fechar os olhos, pois sentia a morte eminente...
No
hospital, feito alguns exames e constatado que não havia nada errado com seu
coração, nem nos exames laboratoriais de emergência, o médico indicou ao rapaz
que procurasse pelo Dr. Paulo dos Santos, neurologista e especialista em
depressão.
Aquilo
lhe caíra como uma verdadeira bomba. Jamais acreditara que depressão fosse uma
doença, ainda mais que ocorresse com pessoas normais, sempre tendeu a acreditar
que era um mal que afetava só às pessoas mais frágeis psicologicamente, ou às
que não tinham equilíbrio mental, ou, então, às apáticas por natureza. No
fundo, depressão mais lhe parecia, até aquele momento, uma fraqueza e não uma
doença de fato.
Talvez
por esse seu pré-conceito desconhecedor da verdade sobre a doença, tão mal
compreendida no senso comum, não aceitara a indicação do plantonista que lhe
socorrera no hospital.
Dois
dias depois, ao retornar do trabalho, sentia-se tão mal que se deitou de terno
e gravata, tal qual chegara. Chorou até os ouvidos se tamparem de tanta pressão
pelo inchaço da narina e dos olhos. Aquela foi sem dúvida a pior noite de sua
vida, desde sempre. Era pouco mais de 08:00h da manhã, quando desesperado,
ligou para o telefone do médico que lhe fora indicado e chorou implorando um
horário ainda naquele dia.
A
secretária retornou a ligação pouco depois e disse que havia conseguido uma
consulta emergencial para ele no fim da tarde. Avisou ainda que aquele médico
só atendia na modalidade particular, pois era muito solicitado. E que também
era preciso levar outros exames realizados recentemente, caso os tivesse. Antes
de desligar, porém, a secretária o inquiriu: _ O senhor tem condições de vir
sozinho?
Affonso
respondeu inseguro que sim, tinha, e que pagaria o que fosse necessário, mas
precisava de um alívio para o mal que estava o matando. Desligado o telefone,
sentiu-se tão agoniado, não sabia se resistiria até à hora da consulta. Suas
dores eram imensas e o abafamento trazido pela angústia sufocava-o, fazendo os
minutos parecerem horas, tão longo se aparentavam.
No
consultório do Dr. Paulo dos Santos, entrou um verdadeiro trapo humano: um
homem que mal conseguia explicar o que sentia sem chorar sofridamente. Entregou
a grande pasta com todos os exames que havia realizado no último mês e pediu: _
Doutor, pelo amor de Deus, me cure! Não aguento mais isso.
Depois
de alguns exames, ali mesmo no consultório o médico constatou:
_ Pelo que você me relatou, Sr. Affonso, e pelos
sintomas que tem apresentado, eliminadas as outras possibilidades clínicas,
creio tratar-se de um quadro de estresse avançado que culminou numa depressão
já bastante notável.
Desta
vez não se aguentou, desabou ali mesmo, na sala do médico. _ Como assim,
depressão, doutor? Sou um cara novo, tenho boa estrutura mental, sempre tive
boa saúde, trabalho muito.
Foi
então que o médico – destes saídos diretamente da ficção – pacientemente lhe
explicou de forma científica o que era a depressão, doença que se deve, em
alguns casos, aos distúrbios nas substâncias químicas produzidas pelo
organismo, afetando os neurotransmissores, e o que ela poderia provocar no
organismo da pessoa, sendo esta jovem ou velha, homem ou mulher.
Fatigado
pela busca por uma resposta e frente a uma aparente realidade, Affonso
rendeu-se, talvez um pouco revoltado, ao tratamento proposto: doses diárias de calmantes
e outras de ansiolíticos...
Bom
seria se todas as gaiolas invisíveis que nos prendem, fossem abertas assim:
rápida e mecanicamente. Mas as engrenagens dos portões e celas humanos são
muito mais complexas que as mais sofisticadas tecnologias artificiais.
Os
remédios, mesmo em altas doses, aliviavam um pouco as dores no peito, a
taquicardia, a sensação de não-existência. Mas o alívio momentâneo seguia-se de
uma expansão da tristeza e da melancolia que o absorviam por completo.
Seu
cansaço existencial era imenso e ainda o perturbava, sentia vontade de morar de
vez na cama e de acabar-se ali. As coisas mais banais da vida tornaram-se pesos
e frustações. Não havia mais dia e noite, havia angústia, simplesmente! Sentia-se
ainda vivo, mas fracamente vivo.
E as
crises de choro?
Essas,
só souberam aumentar com o tempo. Envergonhava-se de não se conter, de ter se
tornado um “maricas” sem causa, tamanho a choradeira. Por isso, afastara-se de
todos a sua volta, isolara-se, mesmo em meio à multidão. A única pessoa que o
via era a faxineira, duas vezes por semana, mesmo assim, mal se falavam. Ele...
trancado no quarto escuro a maior parte do tempo.
Não
lhe importava mais se era domingo, terça ou qualquer outro dia da semana. Todos
eram longuíssimos e perturbadoramente angustiantes. A essa altura, obviamente,
incapacitado para o trabalho, vivia do benefício salarial pago pelo pedido de
afastamento de suas funções. Pelo menos aqui, esse benefício foi concedido...
Naqueles
duros dias-noites de sofrimento, não foram poucas as vezes em que desejou exterminar
a sua própria vida. E tentara... não fosse a faxineira encontrá-lo desacordado
pela manhã e chamar a emergência...o desespero captaria mais um na multidão.
Nada
mais fazia sentido, tudo que mais prezava fora-lhe saindo aos poucos das
lembranças e das alegrias. O pessimismo o inquiria pelo seu fracasso, pela sua
fraqueza, pela sua incapacidade de enfrentar à vida. Sentia-se um ridículo
aleijão humano.
No
espelho, a figura de um homem abatido, envelhecido, fraco e triste... tão
diferente do rapaz altivo e bem apessoado da foto, acima do espelho, que era
ele mesmo, apenas alguns anos antes. Sentia-se um espectro de gente!
Foram
muitas as tentativas de tratamento. Experimentara vários tipos de calmantes e
de ansiolíticos... Alguns um tanto
promissores, outros ainda mais terríveis em seu organismo. Mas sempre ligado a
eles, pois, de alguma forma, os comprimidos eram a sua única fonte de alívio,
ainda que por curtos intervalos. Sem eles, a vida se tornaria impossível
naqueles tempos de tortura intensa.
Felizmente,
o moinho do tempo não para, e assim como engole o que é bom, engole também o
que é mau, e eis que aquela manhã havia algo de diferente. Acordara de verdade,
e até conseguia ouvir o barulho dos carros lá na rua. Nem mais se dava conta,
há muito, de nada que fosse exterior, pois durante todo aquele tempo que “frequentou”
o seu próprio velório, encerrado pela doença, em seu quarto-mundo-reduzido,
perdera a noção do lá fora.
Passada
a vertigem que a retomada da percepção do mundo causara-lhe, sentiu vontade-de-ver-e-sentir-o-sol.
Foi então que abriu as cortinas – também se esquecera de que seu apartamento
tinha janelões de vidro –, e arreganhou as vidraças, colocando toda a sua
cabeça para ser inundada pela brisa fresca daquela manhã ensolarada. Gostou
tanto da sensação que pareceu ter o sol só para si.
O ar
em seus pulmões ardia-lhe de tão fresco. Deixou-se sentir àquela experiência
tão simples e tão distante, abriu todos os seus sentidos, espreitou os ouvidos,
rompeu a muralha, depois de tanto tempo só conseguindo olhar para dentro, para
a escuridão que se lhe abatera, cego à própria cegueira.
Lá
embaixo na rua, o rapaz que entrega gás tocava sem parar o interfone do prédio
ao lado. O ônibus, no ponto abaixo, abarrota-se ainda mais de gente, e segue
como uma lata de sardinha humana. As pessoas seguiam apressadas sabe-se lá para
onde e por que razão.
No
relógio, são 07:47h da manhã de quinta-feira, 22 de maio de 2010. Exatamente, dois
anos, três meses e sete dias depois de sentir-se tomado pela angústia sufocante,
pelo coração aflitivamente disparado e de ter tido a sua primeira crise,
incontrolável, de choro.
Finalmente,
a gaiola de vidro abrira-se...