Como Estrelas na Terra é um filme indiano. Como estrelas na terra relata, essencialmente, a história de vida de uma criança com dislexia.
COMO ESTRELAS NA TERRA
Uma lousa de sala
de aula preenchida por números e letras misturados e, na frente dela,
professoras típicas anunciando as notas de seus alunos. Aqueles que tiveram bom
desempenho ganham um sorriso de satisfação, e aquele que sempre vai mal recebe
uma expressão de decepção.
Assim inicia-se o filme que
nos mostra, através da história de um menino com dislexia, o sofrimento pelo
qual uma criança em idade escolar pode passar, cercada de pessoas incapazes de
entender o que se passa com um outro, especialmente quando este é uma criança.
"Como Estrelas na Terra” é
dirigido pelo, até então, ator e produtor Aamir Khan, que impressiona pela
qualidade, criticidade e sensibilidade do filme, no qual atua como o professor
substituto Ram Shankar Nikumb. Embora a história seja focada em uma criança em
especial, o filme mostra as negligências, falta de cuidado e de atenção com a
maioria das crianças. Em especial, mostra o real papel do educador para a
formação de um novo ser.
Diferente
da maior parte do cinema indiano, as músicas neste filme não são apenas para
promoção do mesmo, mas uma parte importante da construção deste, sendo
inseridas na historia quase como nos dizendo o que as situações representam, sem
as cenas de dança típicas do cinema bollywoodiano - nome dado à indústria de
cinema hindi, a maior indústria de cinema indiana, em termos de lucros e
popularidade, cujo nome se deve à fusão de Bombaim (antigo nome de Mumbai, onde
se localiza a indústria) e Hollywood (indústria cinematográfica americana).
Sendo diferente de todas as outras
pessoas, o menino Ishaan – protagonista do filme - sempre arranja confusão, mas
por não estar dentro do mundo deles, consegue enxergar coisas que os outros
deixam passar despercebidas.
A primeira música
do filme nos mostra exatamente isso, ao criticar o ritmo de vida pré-moldado e
frenético da família de Ishaan - que enfrenta diariamente uma “luta maluca para
chegar a um destino”. Em oposição a isso, as crianças “não são escravas do
tempo, são livres, tem reuniões com as borboletas e debates com as árvores.”
Mas não é isso o que a sociedade
espera delas, como vemos com a mãe do menino, que, mecanicamente, assume o
papel de tirá-lo desse estado, procurando adaptá-lo para a vida no mundo dito
real, o do trabalho, com horários marcados.
Na escola, vemos a religião
impondo regras e organização utópicas, sem levar em consideração as crianças,
que não escutam, muito menos entendem, o que lhes dizem. No mesmo cenário,
surge a professora enérgica que grita, impaciente, com os alunos que ela não
enxerga.
Ao ser ordenado a ler um
texto, Ishaan responde que “As letras estão dançando”, e a professora acha que
o aluno zomba dela. Tendo sua dificuldade ignorada, o
garoto fica nervoso (como era de se esperar) e utiliza-se de
‘mal-comportamento’ para sair da situação. Não importa muito aqui o motivo pelo
qual os professores fazem isso, mas sim o que acabam fazendo às crianças, que
sempre pagam pela ignorância dos outros.
Todos os outros alunos zombam
de Ishaan, acabando por humilhá-lo, e, triste, o menino foge da escola à
procura de liberdade, o que não encontraria naquele lugar. A música que se
segue explicita o pensamento do menino: “Existem outros como eu? Não estou
sozinho sonhando acordado, de olhos abertos?”
Para os pais, Ishaan é
preguiçoso, desatento. O pai é agressivo, não percebe que ele é apenas uma
criança e o quanto pode ser assustador para ele. Ambos os pais deveriam apoiar
o menino, mas ficam nervosos, xingam, batem – não conseguem ver com os olhos do
filho, apenas através dos seus.
Logo, Ishaan deverá mudar-se de
escola, pois suas professoras dizem que ele não progride, erra de propósito e
não se interessa pelas aulas. Mas a culpa é dele ou as aulas eram
desinteressantes? Quem deveria fazê-lo se interessar e ajudá-lo a progredir?
Frente ao “fracasso” do filho,
os pais só conseguem pensar em si mesmos: o pai sente-se insultado por ter um
filho chamado de retardado e a mãe, por sua vez, sente-se culpada,
questionando-se sobre onde teria errado. Nenhum dos dois pensa em como o menino
está se sentindo e o punem (colocando realmente a culpa pelo fracasso em
Ishaan), mandando-o a um colégio interno, com o qual o menino tem pesadelos e
implora para não ir. Ainda assim, ele não tem chances, pois está sozinho – sem
alguém que possa entendê-lo.
As cenas em que Ishaan é
deixado no colégio interno, ao som da música ‘Maa’, que significa mãe – uma das
mais belas do filme –, mostram a dor e desencantamento do menino, ao se ver
abandonado. “Sou tão ruim assim, mãe?”, ouvimos na canção que mostra os
sentimentos de culpa e sofrimento pelos quais toda criança passa ao ser
castigada por aqueles que mais ama.
Toda
criança passa por isso, ao apanhar dos pais – ou mesmo brigar com eles – e logo
em seguida ser impulsionado a chorar no colo deles, afinal de contas não há a
quem mais recorrer (são como o Deus que ama, e por isso pune, mas não deixa de
merecer o amor do filho).
O filme também destrói a
crença de que a mãe sabe o que é melhor para o filho, mostrando que apenas o sentimento
que se tem por este não é suficiente. Para criar uma criança do melhor modo é
preciso ter conhecimento sobre o mundo, saber entender o outro e poder ajudar
quando preciso, sabendo identificar necessidades e enxergar oportunidades.
No colégio interno, a regra é
disciplina. As crianças se adaptam ao sistema e apenas reproduzem o que lhes é
dito, assim agradando aos ‘mestres’. “Lembre-se do que ele diz e imite-o”,
sugere um colega de Ishaan, demonstrando o método com o qual é possível
sobreviver ali (cenário idêntico às escolas tradicionais daqui – Brasil).
Ao longo dos dias, Ishaan ouve
de todos ao seu redor (pai, mãe, professores, etc) a mesma opinião, de que é preguiçoso,
desatento, incompetente... Ninguém busca compreender os motivos de seu
comportamento, mas todos o julgam.
“Por que você não consegue?”,
berram os professores na música que se segue, onde vemos o desespero de Ishaan,
que não consegue se adaptar ao sistema insano de obediência e repetição.
Impossível não lembrar de “Another Brick In The Wall”, pelo tom agressivo com
que as críticas à educação são feitas, com a diferença que, no filme em
questão, os professores são quem têm a palavra, demonstrando toda a sua
prepotência e arrogância frente ao papel de professores.
Longe da família e
ridicularizado no novo ambiente, Ishaan torna-se apático, vazio. A vivacidade, alegria
e curiosidade que o levavam a produzir ricos desenhos e pinturas, agora são
substituídos pela tristeza do abandono, pela decepção, em especial com a
atitude da mãe, pela repressão e autoritarismo que agora lhe são contínuos, sem
ter para onde fugir.
Anestesiado, o menino parece
entrar em um ciclo autodestrutivo – não estando descartadas as possibilidades
de suicídio ou abandono social – e não se dá conta de que poderia obter ajuda
do novo professor que se apresentava de modo diferente, dizendo aos alunos que
a partir de então, em sua aula, estavam livres.
Este professor, Ram Shankar
Nikumb, vindo de uma escola de crianças especiais, tem uma outra visão do
ensino, que olha para o aluno e atende às suas necessidades, bem como abre
novos caminhos. Os outros professores dizem-lhe, por sua vez, que seus métodos
não funcionariam ali, onde as crianças eram preparadas para a “batalha da
vida”.
“Crianças têm de competir, fazer sucesso,
vencer”, diz um dos professores, que deveria ser um profissional apto a lidar
com as diferenças e mostrar que as coisas mais importantes não consegue-se
passando por cima de ninguém, mas se obtém da própria vida. Mas ainda são poucos os professores que
realmente sabem o valor e importância de sua profissão.
Assume-se simplesmente
o papel de adaptar as crianças ao mundo competitivo e alienante do trabalho – e
achando que com isso estão contribuindo suficientemente para a formação dessas
pessoas.
Ram, diferente dos outros,
olha para Ishaan e vê o que ninguém percebia, que “seus olhos berram por
socorro”, e seu papel é ajudar o menino. Mas não é precipitado, antes busca analisar
os cadernos, conversar com o único amigo de Ishaan e, inevitavelmente, procurar
a família – essencialmente, busca entender quem é aquela criança.
Ao som da música que dá título
ao filme, vemos o professor Ram Nikumbh em contato com as crianças especiais e,
em seguida, indo conversar com os pais de Ishaan. Antes de mostrar o papel do
educador, o filme ensina, mais do que isso, o significado e as implicações de se
ter um filho. O professor interpela os pais de Ishaan sobre as dificuldades do
garoto, que para eles são apenas erros e indisciplina, e tenta mostrar-lhes que
Ishaan não faz nada daquilo por ser preguiçoso ou burro, mas por ter
dificuldade em entender as palavras e seus significados. O mal comportamento de
Ishaan, explica aos pais, vem da dificuldade de admitir suas incapacidades: é
mais fácil dizer “não quero”, ao invés de admitir que não consegue.
O professor, então, depara-se com a dura
realidade de que os pais não se importam que o filho esteja bem, mas que seja
bem-sucedido perante os outros. “Como ele vai competir? Terei de alimentá-lo a
vida toda?” questiona o pai, mostrando sua real preocupação com a própria
imagem e desejo, desconsiderando as dificuldades, bem como o bem-estar do
filho. “Nessa corrida desesperada, alimentam cavalos de corrida, não crianças”,
indigna-se Ram, completando que forçar crianças a carregar o fardo das ambições
de seus pais é pior do que trabalho infantil.
Então que, compreendendo o
ambiente onde viveu Ishaan e percebendo características de dislexia nos
materiais e comportamento do aluno, o professor parte para sua missão de
resgatar o garoto para a vida, despertando-lhe o interesse pelo estudo e
mostrando-lhe que ele não está sozinho.
Após Ishaan estar alcançando
progressos em relação aos estudos, graças à compreensão do professor, o pai do
menino vai ao colégio dizer a Ram que andaram pesquisando sobre dislexia, para
que ele não ache que sua família não se importa com Ishaan. Neste momento
marcante, o professor diz o que é importar-se e como isso é essencial para uma
criança. Dar suporte, apoiar, encorajar,
oferecer ajuda e carinho são coisas indispensáveis.
É isso o que uma criança
precisa dos pais, mas, na grande maioria das vezes, estes são muito mais
eficazes em desencorajá-las e lhes fazer achar que são ruins, que são o
problema. Isto foi o que fizeram também os pais de Ishaan – apontado por Ram.
“Que bom que vocês acham que se importam”, conclui o professor, demonstrando
que não concorda com o modo como os pais agiram com Ishaan, fazendo o pai
perceber o quão responsável pelo sofrimento do filho ele era.
É importante deixar claro que
não é o diagnóstico de dislexia que desperta Ishaan, mas a grande oportunidade
do garoto surge da compreensão, identificação e ajuda que lhe oferece o
educador. Partindo do olhar da criança, e entendendo seu mundo, fica fácil abrir
portas para a aprendizagem, utilizando métodos e recursos apropriados e
interessantes. Ram teve a capacidade de colocar-se no lugar de seu aluno e,
partindo de seu mundo, apresentá-lo aos conhecimentos que o menino tanto ansiava
por construir, mas não tinha oportunidade ou auxílio.
Aí
vemos a diferença de um professor – educador – que se compromete com o aluno,
não com os conteúdos. Em contato com outros professores, iguais aos tantos
outros das escolas que frequentou, ou outros profissionais que poderiam lhe
sugerir que tomasse remédios que apenas o adaptariam e entorpeceriam, o
diagnóstico de dislexia pouco favoreceria Ishaan.
Fracassada é a forma de
ensinar que vemos incansavelmente no inicio do filme e por diversas vezes em
nossas vidas, com a separação dos conhecimentos, descontextualização dos
conteúdos com a vida das crianças e a obediência em oposição à reflexão e
criticidade. A diferença está no modo como as dificuldades são observadas e
trabalhadas, respeitando-se o ser humano por trás dos rótulos, observando suas
potencialidades e dando importância ao que realmente fará a diferença na vida
dessas crianças: o conhecimento.
Diga-se de passagem que erros
ou trocas grafêmicas (troca de letras semelhantes) e espelhamentos de letras
são naturais quando as crianças entram no processo de alfabetização, e não
indicam necessariamente que a criança seja disléxica.
Ao final do filme, vemos os
professores e pais de Ishaan reconhecendo suas limitações, se humanizando e percebendo
os outros – cena difícil de ser vista na vida real. Temos realmente um final
feliz – que não cabe aqui exprimir em palavras. Mas junto com os créditos, vemos
que o final feliz é apenas na ficção, talvez apenas para algumas poucas
crianças da vida real, pois surgem na tela imagens de crianças reais, malcuidadas,
maltratadas, exploradas, que, ainda assim, sorriem e não deixam de ser
crianças, ávidas por conhecimentos.
O filme como um todo nos
apresenta uma ficção que não tem nada de irreal – é a história da vida de
incontáveis crianças e adultos. Quiséramos nós que tudo isso fosse apenas mais
uma história de ficção