sexta-feira, 29 de julho de 2011

A terceira via e o Direito Ambiental: interrogações possíveis

Autora: Ms. Magna Campos 

Resumo: Este texto tem por objetivo discorrer sobre a proposta de Anthony Giddens intitulada de “terceira via”, na qual o autor aponta a necessidade de um novo contrato social, adequado à realidade do mundo pós-moderno ou líquido-moderno, envolto que é pelos eventos da globalização e da localização. A “terceira via” emerge do conceito de progresso autossustentado, um dos novos paradigmas exigido pela economia contemporânea, e é construída com base no trinômio inovação-produtividade-sustentabilidade. A filosofia da “terceira via” preocupa-se em procurar o sentido das três grandes revoluções: a globalização, as transformações da intimidade e a mudança do relacionamento do homem com a natureza. Dessa proposta de Giddens, surge um fio orientador/indagador para as questões práticas e conceituais a serem abordadas pelo Direito Ambiental Brasileiro.

Palavras-chave: terceira via, novo contrato social, direito ambiental, globalização, modernização ecológica.

Sumário: 1. O contexto pós-moderno ou líquido-moderno.
1.1. A questão ambiental e a proposta de uma Terceira Via. 
1.2 A Terceira Via e o trinômio: inovação-produtividade-sustentabilidade. 
1.3 A nova proposta e os horizontes para o Direito Ambiental.


1. O contexto pós-moderno ou líquido-moderno
A modernidade líquida, termo cunhado por Zygmunt Bauman[1] para designar a nova configuração da modernidade vivenciada, diz respeito à discussão das transições paradigmáticas[2] que vêm ocorrendo desde o final do século XX e, especialmente, nesse início de século XXI, o que nos levaria ao questionamento e à reescrita dos ideais da modernidade, tais como: a racionalidade a-histórica, as verdades transcendentais[3], a homogeneidade do sujeito social, a autonomia, as fronteiras territoriais, dentre outros.
A partir de Bauman (2001), podemos conceber a modernidade líquida como uma forma de interrogar a modernidade e de problematizar certas questões por ela trazidas. Dessa forma, a modernidade[4] seria um longo processo de “liquefação” da solidez característica dos tempos pré-modernos. O que o projeto da modernidade teria se proposto era substituir os “sólidos” tradicionais por novos “sólidos”, mais confiáveis, previsíveis e administráveis segundo critérios racionais. Mas o que de fato ocorreu, no entender de Bauman, foi que, ao longo dos tempos modernos, os sólidos se derreteram, ou seja, aqueles conceitos centrais, como por exemplo, emancipação, individualidade, tempo/espaço, os quais deveriam constituir o chão firme dos novos tempos, perderam sua rigidez.
Enquanto a modernidade sólida colocava a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, na modernidade líquida a duração eterna não tem função. O curto prazo substituiu o longo prazo, e fez da instantaneidade o ideal último. Se antes os indivíduos contabilizavam seu tempo e seu espaço a partir do que seu corpo podia fazer; e depois passaram a lidar com o tempo e o espaço que os automóveis produziam – estar a dez minutos de alguém/algum lugar não significa o mesmo para alguém a pé e para alguém motorizado –; agora o espaço dissolve-se, uma vez que por meio de um sinal eletrônico, uma mensagem pode atravessar o mundo em segundos ou frações de segundos[5].
Por esse motivo, o autor argumenta na direção de visões fluidas e heterogêneas e muito mais dinâmicas da sociedade contemporânea, construída “no aqui e no agora”. Essas tecidas sob uma trama movente[6], ao contrário de visões duradouras e unificadoras da tradição moderna, baseadas nas verdades universais e na racionalidade, que, supostamente, levariam ao progresso e ao desenvolvimento, amparadas no ideal do Estado-nação.
Uma nova ordem mundial ou um novo capitalismo, chamada por Bauman (1999) de nova (des)ordem mundial, que atravessa o mundo, em todas as esferas, por meio da globalização[7], ameaça e enfraquece a fórmula do Estado-nação, por meio dos muitos processos de integração e interpenetração econômica, cultural, tecnológica e ideológica entre os países, ocasionando uma crescente interpenetração de bens físicos e simbólicos entre os territórios e um aumento exponencial dos fluxos globais de pessoas.
Segundo Hall (2004), baseado em Giddens (1990),
“a globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço.” (HALL, 2004, p.67) grifos do autor
Isso nos permite pensar que a globalização, com suas configurações em que o tempo é um instante e o espaço é um quase nada, alcança a todos nós, indiferentemente de estarmos mais ou menos engajados no universo global[8]. Tal fato nos leva à conclusão de que o espaço e o tempo são produtos das relações sociais, culturais, adicionadas às políticas e econômicas.

1.1. A questão ambiental e a proposta de uma Terceira Via
E se espaço e tempo são produzidos de forma não natural, mas conjuntural, podemos também pensar que a questão ambiental, tão necessariamente discutida, precisa ser observada no espaço ambivalente da fronteira entre modernidade sólida e modernidade líquida, a fim de serem interrogadas as suas conjunturas de uma forma menos ingênua. Tendo em vista que, na modernidade líquida, emergem novos “paradigmas” exigidos pela economia, como um novo conceito de progresso autossustentado, que respeite o meio ambiente e valorize o indivíduo e sua criatividade, um domínio sem precedentes da tecnologia, e uma exploração da capacidade de consumo[9] por parte do ser humano como nunca antes se presenciou (BAUDRILLARD, 1985).
Talvez a nova configuração da sociedade, acima mencionada, estabeleça a necessidade de um novo contrato social. E a crítica cultural vem a oferecer, por meio do crítico-sociólogo Anthony Giddens, uma proposta para esse novo Contrato Social, denominado pelo próprio Giddens (2005) de A Terceira Via. Para o autor,
“A filosofia da ‘terceira via’ preocupa-se em procurar o sentido das três grandes revoluções: a globalização, as transformações da intimidade e a mudança do relacionamento do homem com a natureza. A partir dessas análises, projeta políticas que, sendo realistas, não deixem de ser radicais. Ou seja, não abram mão dos ideais de solidariedade e inclusão social.” (GIDDENS, 1998, p.1) grifo, em negrito, nosso.
O autor sugere, por meio dela, um caminho alternativo entre (ou além) (d)a direita e (d)a esquerda política, (d)o avanço econômico e (d)a questão ecológica, (d)o conservadorismo e (d)o avanço tecnológico, (d)o desenvolvimento e (d)a destruição da natureza. A terceira via seria, portanto, um terceiro caminho para se pensar a questão ambiental.
Como foco deste Novo Contrato Social, a Terceira Via é construída em torno da conjugação: sociedade civil-mercado-governança. Pois, embora a
“intervenção do governo seja necessária para promover sólidos princípios ambientais, ela envolve a ativa cooperação da indústria – é de se esperar que seja sua cooperação voluntária, mediante o reconhecimento de que a modernização ecológica é benéfica para os negócios.” (GIDDENS, 2005, p.67)
E o autor complementa:
“A modernização ecológica implica uma parecia em que governos, empresas, ambientalistas moderados e cientistas cooperam na reestruturação da economia política capitalista em linhas mais defensáveis ambientalmente.” (MARTEEN, 1995 apud GIDDENS, 2005, p. 67)
A associação entre economia, desenvolvimento e ecologia são propostas dentro do novo parâmetro da modernização ecológica. Dessa forma, fica evidente que, para a Terceira Via, desenvolvimento com gestão do meio ambiente na direção da sustentabilidade não são incompatíveis. Aliás, é o próprio Giddens (2005) quem critica o Relatório Brundtland que forneceu a definição de desenvolvimento sustentável que permeia a maior parte dos debates ambientais atualmente.
No entender de Giddens (2005, p.66),
“Brundtland forneceu uma definição enganosamente simples de desenvolvimento sustentável, como a capacidade da atual geração ‘de assegurar que ele atenda às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de futuras gerações de satisfazer suas próprias necessidades’. Uma vez que não sabemos quais serão as necessidades das futuras gerações, ou de que modo a utilização do recurso será afetada pela mudança tecnológica, a noção de desenvolvimento sustentável não permite precisão – não é surpreendente que pelo menos quarenta definições diferente dela tenham sido registradas.”
Assim, desenvolvimento sustentável seria mais um princípio norteador do que uma fórmula precisa. De qualquer forma, foi endossado pela Agenda 21, e vários países, inclusive o Brasil, fizeram muitos esforços para introduzi-lo em seu pensamento econômico.
A modernização ecológica, de acordo com Marteen Hajer (apud GIDDENS, 2005, p.67), reúne vários enredos críveis e atraentes: desenvolvimento sustentável em lugar de “crescimento definidor”; uma preferência pela prevenção no lugar da cura; o equacionamento de poluição com ineficiência; e o tratamento da regulação ambiental e do crescimento econômico como mutuamente benéficos.
Da modernização ecológica emergem duas questões fundamentais: nossa relação com ciência e tecnologia e nossa relação com o risco. Muito condicionada pela globalização, a mudança científica e tecnológica se acelerou, e sua influência sobre nossas vidas tornou-se mais proeminente. Não é mais possível pensar “o ambiente” como algo externo a nós, como o mundo natural, pois, devido às inovações, muito do que entes era natural é agora produto da atividade humana, ou influenciada por ela – não apenas o mundo externo, mas também o “ambiente interno” do corpo. Pois ciência e tecnologia invadiram o corpo humano, e reformataram o liame entre o que pode ser humanamente realizado e o que simplesmente temos de admitir da natureza (GIDDENS, 2005).
Uma política ecológica para os dias de hoje, conforme pressupõe Giddens (1998), tem de ir além do simples ambientalismo. Não adianta propor coisas como o "retorno à natureza". A maioria de nossas áreas ambientais está de tal forma atrelada a sistemas sociais que nem poderíamos começar a separar um do outro. Assim,
“Não adianta planejar uma ‘revolução não violenta’, que erradique a ‘sociedade industrial poluidora’ e nos ponha em harmonia com o planeta. A sociedade tecnológica é irreversível. É desse ponto que precisamos partir, lembrando que vivemos num mundo de riscos artificiais, criados por nós mesmos. De um ponto de vista prático, precisamos assumir a administração desses riscos, sem nostalgia ou conservadorismo. Por exemplo, intensificando muito mais do que ocorre hoje os contatos entre o governo e a comunidade científica.” (GIDDENS, 1998, p. 3) grifos do autor
A atitude mais interrogatória assumida na modernidade líquida, conforme tratada no início deste texto, não nos permite ver ciência e tecnologia como era vista antes: algo alheio à política e ao direito. Veja-se isso, por exemplo, nas amplas manifestações imediatas e na resistência da população tão logo se depare com a ameaça de implantação de uma nova usina mineradora que coloque o patrimônio cultural e ambiental de uma localidade ou de um conjunto de localidades. Os manifestantes logo cobram do poder político uma posição, e, em vários casos, recolhem assinaturas pedindo o tombamento do patrimônio ameaçado e não aceitam simplesmente a implantação da atividade industrial com a mesma atitude conformada do início da industrialização. Mesmo que não consigam, muitas vezes, o intento desejado, mas consegue fazer com que, ao menos, a questão seja levada a escrutínio público. Neste contexto, a mídia pode ser um dos elementos que mais tem a contribuir para que se implante o debate social, já que na sociedade de informação, a mídia configura-se como sendo o quarto poder[10] atuante.

1.2 A Terceira Via e o trinômio: inovação-produtividade-sustentabilidade
Para Giddens, o modelo da Terceira Via propõe que a inovação permita ênfase em perfis ecológicos mais sofisticados, os novos sistemas verdes de produção decorrentes do trinômio inovação-produtividade-sustentabilidade. Nesse ínterim, a tomada de decisões em contextos como o mencionado acima “não pode ser deixada aos ‘especialistas’, mas tem de envolver políticos e cidadãos” (GIDDENS, 2005, p. 69). Nesse Novo Contrato Social, ciência e tecnologia não podem ficar alheias ao processo democrático, tão pouco podemos esperar que os especialistas saibam automaticamente o que é bom para nós ou nos forneçam verdades inquestionáveis, já que este último é mais um dos paradigmas da modernidade sólida que se liquefez. Especialistas e empresários devem, neste novo contrato, serem convocados para justificar suas conclusões e planos de ação diante do escrutínio público.
Já no que se refere às novas situações de risco da modernidade líquida, não temos a experiência passada para nos guiar, pois várias situações são totalmente adversas às já conhecidas. Veja-se o caso da polêmica em torno do aquecimento global. Várias correntes afirmam que ele tem origem na ação humana e que reserva futuros desastres para a humanidade. Todavia, uma minoria de especialistas não acredita em nenhuma dessas coisas e afirmam ser esse um “evento” natural da atividade da própria natureza.
Os riscos ecológicos, no entanto, não podem ser deixados de lado, pois fluem para áreas essenciais da política moderna. Não há como pensar em assistência à saúde pública, por exemplo, sem se considerar a imensa produção de lixo e de poluição atmosférica geradas atualmente. O que demonstra a interligação das questões ambientais com as questões políticas.
Sendo assim, pensando em modernização ecológica, é preciso adotar-se o princípio do acautelamento como meio de enfrentar as ameaças ecológicas. Esse princípio envolve política e, não obstante, o direito, uma vez que declara que a ação sobre questões ambientais deve ser tomada ainda que haja incerteza científica acerca delas, princípio esse que norteia a papel do Estado e das leis ambientais na modernidade líquida. Seguindo esse postulado, os desastres ocorridos em 2011, na Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, devem servir para nortear a criação ou a atualização de um dispositivo legal acerca da ocupação de áreas de risco no país, ainda que não se saiba se tal desastre foi apenas um episódio esporádico ou se virá a ser passível de acontecer em diversas outras encostas. De forma análoga, os programas de combate à chuva ácida devem existir ainda que não existam estudos conclusivos sobre os danos causados, por exemplo, em obras artísticas tombadas pelo patrimônio histórico-cultural.
Mas a Terceira Via também aponta que nem sempre o princípio do acautelamento será útil e aplicado, pode ser que, em vários casos, seja necessário que o Estado seja mais audacioso do que cauteloso no apoio à inovação científica e tecnológica.
“O risco ecológico muitas vezes não será normalizado dessa maneira [com base no acautelamento], porque em muitas situações nós já não temos a opção de ‘permanecer junto à natureza’, ou porque o equilíbrio entre benefícios e os perigos do avanço científico e tecnológico é imponderável.” (GUIDDENS, 2005, p.71) grifos do autor
O que configura o caráter complexo das novas situações de risco. O que o Novo Contrato Social propõe, portanto, é que igual atenção seja dada tanto às questões ambientais, quanto aos ricos. O risco chama a atenção para os perigos, mas não esqueçamos que, também, para as oportunidades que o acompanha. Funciona, assim, como o princípio energizador de uma sociedade que se afastou da tradição e da natureza. Essa nova “proeminência do risco conecta a autonomia individual de um lado com a influência avassaladora da mudança científica e tecnológica em outro” (GIDDENS, 2005, p.72).

1.3 A nova proposta e os horizontes para o Direito Ambiental
Chegamos, desta feita, ao teorema central da Terceira Via de Giddens: “não há direitos sem responsabilidades”, ou “com os direitos vêm as responsabilidades”.
“Uma vez que tradição e natureza sejam transformadas, decisões orientadas para o futuro têm de ser tomadas e somos responsáveis por suas consequências. Quem deve assumir a responsabilidade pelas consequências futuras de atividades presentes (seja de indivíduos, nações ou outros grupos) é das maiores preocupações da nova política, como é e quem provê a segurança se as coisas dão errado, como e com que recursos.” (GIDDENS, 2005, p. 73)
Seria essa a orientação para o Direito Ambiental na modernidade líquida? Certamente, na proposta desse Novo Contrato Social, seria. Estariam envolvidos na Terceira Via: a regulação, o acautelamento, a gestão dos riscos e a atribuição de responsabilidades. E teríamos uma certa remodelagem nos valores tradicionais para os valores desta nova via: a igualdade, a proteção aos vulneráveis, a liberdade como autonomia, a não existência de direitos sem responsabilidades, a não existência de autoridade sem democracia. Afinal, numa sociedade em que a tradição e o costume estão perdendo seu domínio, a única via possível para o estabelecimento da autoridade é a via da democracia. E, nesse âmbito, lembremos a máxima de que
“[o Direito] sem a compreensão do homem na história, sem contar com o pensamento crítico, sem se integrar às questões sociais, econômicas, científicas e tecnológicas de seu tempo, o Direito não mais sabe qual é a sua finalidade. Enfim, torna-se um cadáver insepulto. “(GAMBOGI, 2005, p.264)
Assim é preciso reconhecer que, numa sociedade de valores esfacelados, em que as pessoas formam sua identidade social como consumidores – e não como cidadãos, nem como membros de uma família ou de um Estado ou de uma religião –, todo projeto político e social, no caso, a Terceira Via, passa pelas instâncias de legitimação do direito, pelo menos como meio de entrelaçamento exterior das vontades em conflito no mercado ou, no mínimo, como autorização de agir de modo a não destruir o outro. Assim, o Direito, estendido ao Direito Ambiental, nessa nova realidade, muitas vezes, “terá que se valer da troca da invocação do passado pela antecipação do futuro” (GAMBOGI, 2005, p.262).
Além disso, como um princípio ético, a máxima “não há direitos sem responsabilidades” deve se aplicar não apenas aos beneficiários do welfare state[11], mas a todos, quer seja político ou cidadão comum, ricos ou pobres, empresas pequenas ou grandes indústrias; tendo em vista que o Novo Contrato Social indica que quem “lucra” como os bens sociais deve usá-los com responsabilidade e dar algo em troca à comunidade. Pois, o Estado ao garantir direitos para o cidadão,
“deve fazer com que eles venham acompanhados de responsabilidades. A saúde, por exemplo, já não pode ser tratada como algo puramente passivo, sobre a qual a pessoa não tem nenhum controle: sabemos o bastante a respeito da influência da alimentação ou do estilo de vida sobre nosso organismo para julgar que toda doença é um azar externo que se abateu sobre nós. Os arranjos de seguro-desemprego também devem ser feitos de modo a não travar a pessoa na inatividade. A decisão de voltar ao trabalho, desistindo de pensões [...] são benéficas para o indivíduo e para o grupo.” (GIDDENS, 1998, p.2)
O que a Terceira Via mostra é que a ação ecológica precisa deixar de ter apenas o caráter de denúncia para orientar-se por políticas e proposições que conjuguem tecnologia, ciência e ecologia. Afinal, o meio ambiente não é mais apenas um problema local, é global, se considerarmos o fenômeno do aquecimento global, por exemplo. Pois, como afirma Hall (2004), já mencionado, a globalização implica um movimento de distanciamento da visão estática de território e de sociedade como delimitados, tendo em vista que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.
Um olhar menos pessimista é o enfoque pretendido, não haveria a necessidade, conforme os argumentos apresentados por Giddens (2001), de enxergar como incompatíveis o desenvolvimento econômico e o gerenciamento ecológico firme. À primeira vista, quando se propôs a sustentabilidade, foram geradas assertivas no sentido de que as melhorias ecológicas geravam altos custos de produção e, portanto, perda de competitividade no mercado pela empresa que investisse nesse quesito. Todavia, uma nova orientação, com vistas a modernidade ecológica, mostrou haver uma linha de ação diferente. Uma perspectiva ecologicamente mais sofisticada pode promover inovações tecnológicas que permitam aos produtores maior eficiência, aumento na produtividade e melhor aproveitamento dos recursos.
O autor cita como ilustrativo o caso do agente para refrigeração de geladeiras ambientalmente mais seguro, apontado em 1992, pelo Greenpeace, e que foi adotado por algumas fábricas alemãs. Ao final das contas, o sistema mostrou-se mais barato e eficaz do que as alternativas poluentes, e mais tarde a maioria dos produtores migrou para esta tecnologia. Ilustração que demonstra que o trinômio ciência-tecnologia-sustentabilidade podem se coadunar sem maiores conflitos.
Nesta visão, risco e responsabilidade se misturam de uma nova maneira. O debate sobre a globalização, no entender desta proposta, está profundamente ligado a questões e problemas ecológicos. E em lugar de tratá-los como questões secundárias, a política da Terceira Via as vê como fundamentais (GIDDENS, 2001). Isso significa desenvolver uma análise dos riscos sofisticada, e reconhecer que a decadência ambiental afeta as pessoas mais pobres de forma bem mais direta e perversa do que as mais abastadas.
Não obstante, podemos esquecer do pressuposto de Bauman (1999) que diz que, no projeto da globalização, configuram-se duas formas proeminentes do espaço, onde quem está livre da localidade pode escapar dos adventos da globalização; já os que estão presos ao local, estão fadados a cumprir as responsabilidades e penalidades do processo.
O próprio Bauman ilustra a proposição acima e nos impele a refletir sobre a construção das grandes corporações econômicas – ainda mais avultados na era digital, dos investimentos em papéis virtuais nas bolsas de valores mundiais – a sua localização no tempo e no espaço e, também, sobre o conflito gerado pela falta da presença física dos investidores já que “a companhia pertence às pessoas que nela investem - não aos seus empregados ou à localidade em que se situa” (BAUMAN, 1999, p.13). Desta forma, os acionistas não estão presos ao local, ao contrário dos funcionários, que tem seus vínculos familiares e suas obrigações na localidade. E se os danos ambientais causados pela indústria em que trabalham são irreversíveis, serão eles os mais afetados juntamente com os demais moradores da comunidade. Os acionistas, no entanto, caso vislumbrem melhores oportunidades em outras localidades, migrarão para ela, sem maiores problemas, deixando aos que ficam o ônus da localidade e de tudo que nela está implicado. Decorre daí a visão de que a globalização ressignificou irreversivelmente a localidade, tornando-o a sua sombra.
Além disso, modernização ecológica, pode ser entendida, em grande parte como uma questão de política nacional, mas os riscos ambientais em geral cruzam as fronteiras das nações e alguns são de alcance global.
 Por isso, dadas as novas configurações sociais da modernidade líquida, não podemos pensar em modernização ecológica, conforme proposta pela Terceira Via, caso não seja levado em consideração um novo contrato social, assentado na relação da política com a ciência e a tecnologia, pois somente assim seria possível promover as transformações necessárias para tal modernização, sem demagogismos e alienação, e, conjugar sociedade civil-mercado-governança.

Referências Bibliográficas:
BAUDRILLARD, Jean. À sombra das maiorias silenciosas: o fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
GAMBOGI, Luís Carlos Balbino. O paradigma jurídico pós-moderno. In: ______. Direito, razão e sensibilidade: as intuições na hermenêutica jurídica. Belo Horizonte: Editora Del-Rey – FCH- Fumec, 2005. p. 262-274.
GIDDENS, Anthony. A terceira via: reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da social-democracia. 5.ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
GIDDENS, Anthony. A terceira via e seus críticos. Rio de Janeiro: Record, 2001.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. 2.ed. São Paulo: Ed Unesp, 1991.
GRAIEB, Carlos. Entrevista com Anthony Giddens. Revista Veja. 30 set. 1998. Disponível em: http://veja.abril.com.br/300998/p_011.html. Acesso em: 03 mar. 2011.
GUARESCHI, Pedrinho A. Mídia e democracia: o quarto versus o quinto poder. Revista Debates, Porto Alegre, v.1, n.1, p. 6-25, jul./dez. 2007.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
JAMESON, Frederic. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Editora Ática, 1997.
SALES, Ana Paula Correa de. A efetividade das normas constitucionais de direito
fundamental no Estado Democrático de Direito. 16/12/2005. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br . Acesso em: 02 mar.

Notas:


[1] O termo “modernidade líquida” é cunhado por Bauman no livro que tem por título exatamente essa nomeação, publicado no Brasil em 2001.
[2] Paradigma, de acordo com Kuhn (1975, p.221-222), é algo compartilhado pelos membros de uma comunidade, ou seja, é o consenso de uma comunidade científica em relação a alguns conceitos que vão definir o que é válido para a comunidade.
[3] Na visão de Jameson (1997), uma importante característica da pós-modernidade é a fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade dos discursos característica da era moderna. Ao contrário, não parece haver, na pós-modernidade, o pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas, sim o pressuposto de que existem verdades relativas. Assim sendo, na medida em que se pressupõe que não há uma verdade que justifique a universalização dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos coexistindo em uma mesma época.
[4] Para Bauman haveria duas espécies de modernidades: a sólida (pesada) – referente ao que usualmente é chamado de modernidade, propriamente dita – e a líquida (leve) – referente ao que é chamado, por vários autores, de pós-modernidade.
[5] Com isso enveredamos de vez na era do “tempo real”, do “on-line”.
[6] A ideia do movimento é muito recorrente em Bauman, assim como em muitos outros autores que tratam da questão da pós-modernidade.
[7] Ver: BAUMAN (1999; 2001); GIDDENS (1991); HALL (2004).
[8] Mesmo que o global tenha dado maior visibilidade também ao local, entendemos juntamente com Hall que esse ‘localismo’ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o exterior constitutivo da globalização (2003, p. 61). Com base nessa afirmativa que pensamos que todos estamos envoltos pelo advento da globalização, indiferentemente dessa contextualização ser global ou local. E é nesse sentido, que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.
[9] Conforme Baudrillard (1985), o que garante a coesão social [ na pós-modernidade] não são mais as formações culturais tradicionais e nem mesmo o Direito, mas os signos flutuantes no mercado de consumo e a relação do consumidor com os mesmos.
[10] “É fácil constatar a enorme influência da mídia na política. O livro de Thompson (2002), sobre escândalo político, mostra que a política é, hoje, ininteligível sem que levemos em consideração a variável mídia. A política e os políticos trabalham com um material especial, que é a credibilidade. A matéria prima da política é a credibilidade, um capital simbólico. Ora, a mídia é o meio de produção desse capital, tanto para construí-lo, como para destruí-lo, como é o caso do escândalo político” (Guareschi, 2007, p.2)
[11] Podemos compreender Welfare State como a mobilização em larga escala do aparelho de Estado em uma sociedade capitalista a fim de executar medidas orientadas diretamente ao bem-estar da população. Não se tratando apenas de um simples conjunto de políticas sociais (SOUZA, 1999, apud SALES, 2005, p.3).

Fonte: CAMPOS, Magna. A terceira via e o Direito Ambiental: interrogações possíveis. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, 87, 01/04/2011. Disponível em http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9371. Acesso em 29/07/2011.

Filme: 12 HOMENS E UMA SENTENÇA - 1957 e 1997

Sinopse:
Com sua experiência provinda do teatro, não é estranho que Sidney Lumet tenha feito um filme tão bom, totalmente teatral, passado 97% dentro de uma mesma sala. Acreditem, sei que soa estranho quando ouvimos essa característica, porque antes de ver o filme me perguntava se o roteiro teria força o bastante para agüentar uma mesma locação por uma hora e meia sem ficar cansativo, repetitivo, chato e desinteressante. Só que a preocupação ficou completamente de lado enquanto eu assistia essa obra-prima, já que fiquei tão dentro da história, tão envolvido, tão curioso ao ponto de até mesmo me esquecer do mundo por toda sua duração.
A história é bem simples. Doze jurados devem decidir se um jovem, acusado de assassinar o seu pai com uma facada no peito, é culpado ou inocente. Só que onze deles têm a certeza de sua culpa, enquanto o outro não quer votar por culpado apenas por cogitar a possibilidade do réu ser inocente. Não tem a clara certeza de sua culpa, algo que os outros possuem tão claramente. Como a jurisdição americana indica que só deve-se votar pela culpa do réu caso não haja nenhuma dúvida de sua acusação, e como todos os outros onze estão doidos para irem embora e acabarem com aquela 'chatice', o filme começa a criar os seus conflitos. Só que esse pouco caso de seus companheiros de júri acaba servindo de inspiração para que o jurado de número 8, interpretado por Henry Fonda (de Era uma vez no Oeste<>), busque cada vez mais a certeza dos outros jurados, tentando convencê-los a terem a mesma opinião que a sua, afinal, trata-se de uma vida humana que está em jogo, não um item qualquer.
As discussões são sempre de altíssimo nível. Você vai entrando cada vez mais na história e acaba por tomar partido igualmente aos jurados: ou você vai torcer pela inocência do rapaz, ou pela culpa, ou vai ficar confuso... O impossível é ficar indiferente ao roteiro extremamente bem escrito, curioso e inteligente.
 
 
 
 Sinopse:
Remake do classico de 1957, considerado até hoje como um dos melhores filmes do mundo, este remake feito para a TV (e nunca lançado em DVD, o que explica o VHSRip e sua raridade) tem como diferencial sua estrutura narrativa: praticamente 2h de filme passadas dentro de uma sala, onde 12 jurados discutem sobre o destino de um jovem acusado de matar o próprio pai. Em meio a pessoas completamente normais e corriqueiras, ansiosas por acabarem logo com seu dever judicial e cuidarem de suas vidas, um jurado se dispõe a analisar mais cuidadosamente os fatos, pois "condenar um homem à morte é algo muito sério".
Começa então uma retrospectiva do caso, desta vez analisada pelo ponto de vista de homens comuns, cada qual com sua formação sócio-cultural, seus orgulhos, medos, raivas e pontos de ebulição, tornando o filme totalmente atraente e mantendo o espectador atento, ainda que sem ação, explosões - e mesmo trilha sonora. 
 

terça-feira, 26 de julho de 2011

Documentário: A META



ametaINFORMAÇÕES DO ARQUIVO
Áudio: Português
Legenda: Sl
Tamanho: 783 MB
Formato: Avi
Qualidade: VHSRip
Ano de Lançamento: xxx
Gênero: Documentario
Duração: 51 Minutos
Classificação Etaria: 14 Anos


Sinopse: Baseado no best-seller de Eli Goldratt, A Meta conta a história de Alex Rogo, gerente de uma fábrica que enfrentam a ameaça de encerramento da sua fábrica. . O vídeo segue Alex e sua equipe como eles usam a Teoria das Restrições para transformar sua divisão medíocre. O primeiro obstáculo permanente na forma de implementar uma mudança importante é chegar a um acordo   sobre a direção da mudança. Uma ferramenta poderosa que pode ser usado para criar esse acordo é o objetivo: O uso deste vídeo não se limita apenas ao início do processo de execução. Chegar a um acordo sobre a mudança de direção não é um esforço de tempo. À medida que a empresa tem uma nova direção haverá alguma difusão inevitável. . .

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quinta-feira, 2 de junho de 2011

Duas das maiores autoridades científicas da Linguística brasileira comentam a polêmica sobre livro "Por uma vida melhor"

José Luiz Fiorin fala da polêmica sobre o livro didático "Por uma Vida Melhor" 

Ederson Granetto entrevista José Luiz Fiorin, Doutor em Linguística pela USP e um dos maiores especialistas brasileiros em Pragmática, Semiótica e Análise do Discurso sobre a polêmica. Desde a semana passada, jornais, rádios e tevês embarcaram numa polêmica sobre o livro didático "Por uma Vida Melhor", da Editora Global, destinado a Educação de Jovens e Adultos. O livro foi distribuído pelo MEC a 4.236 escolas do país, quase meio milhão de alunos. Pouca gente deve ter lido o livro, que foi acusado de ensinar a falar e escrever errado. Em capítulo dedicado às diferenças entre a linguagem oral e a escrita chamado "Escrever é diferente de falar", o texto mostra que é comum considera o uso, na linguagem oral, de expressões consideradas gramaticalmente erradas pela norma culta e alerta para a possibilidade do falante sofrer preconceito linguístico em determinadas situações. Em seguida, apresenta exercícios onde pede ao aluno para adequar à norma culta expressões coloquiais. O livro não está errado ou mal elaborado, a imprensa é que não tem conhecimento científico do que está falando.

Entrevista com o professor Ataliba Castilho sobre o livro "Por uma Vida Melhor"

Ederson Granetto entrevista o professor Ataliba Castilho sobre o polêmico livro didático para jovens e adultos distribuído pelo MEC a 4.236 escolas do país, quase meio milhão de alunos. O Livro "Por uma Vida Melhor", da Editora Global, considera válido o uso, na linguagem oral, de expressões gramaticalmente erradas mas alerta para a possibilidade do falante sofrer preconceito linguístico. Ataliba Castilho é pesquisador e professor aposentado da USP e da Unicamp.

domingo, 29 de maio de 2011

Língua e Ignorância

 

 Por Maria José Foltran (ABRALIN)

       Nas duas últimas semanas, o Brasil acompanhou uma discussão a respeito do livro didático  Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático do MEC. Diante de posicionamentos virulentos externados na mídia, alguns até histéricos, a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA - ABRALIN - vê a necessidade de vir a público manifestar-se a respeito, no sentido de endossar o posicionamento dos linguistas, pouco ouvidos até o momento.
       Curiosamente é de se estranhar esse procedimento, uma vez que seria de se esperar que estes fossem os primeiros a serem consultados em virtude da sua expertise. Para além disso, ainda, foram muito mal interpretados e mal lidos.
         O fato que, inicialmente, chama a atenção foi que os críticos não tiveram sequer o cuidado de analisar o livro em questão mais atentamente. As críticas se pautaram sempre nas cinco ou seis linhas largamente citadas. Vale notar que o livro acata orientações dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) em relação à concepção de língua/linguagem, orientações que já estão em andamento há mais de uma década. Além disso, não somente este, mas outros livros didáticos englobam a discussão da variação linguística com o intuito de ressaltar o papel e a importância da norma culta no mundo letrado. Portanto, em nenhum momento houve ou há a defesa de que a norma culta não deva ser ensinada. Ao contrário, entende-se que esse é o papel da escola, garantir o domínio da norma culta para o acesso efetivo aos bens culturais, ou seja, garantir o pleno exercício da cidadania. Esta é a única razão que justifica a existência de uma disciplina que ensine língua portuguesa a falantes nativos de português.
       A linguística se constituiu como ciência há mais de um século. Como qualquer outra ciência, não trabalha com a dicotomia certo/errado. Independentemente da inegável repercussão política que isso possa ter, esse é o posicionamento científico. Esse trabalho investigativo permitiu aos linguistas elaborar outras constatações que constituem hoje material essencial para a descrição e explicação de qualquer língua humana.
       Uma dessas constatações é o fato de que as línguas mudam no tempo, independentemente do nível de letramento de seus falantes, do avanço econômico e tecnológico de seu povo, do poder mais ou menos repressivo das Instituições. As línguas mudam. Isso não significa que ficam melhores ou piores. Elas simplesmente mudam. Formas linguísticas podem perder ou ganhar prestígio, podem desaparecer, novas formas podem ser criadas. Isso sempre foi assim. Podemos ressaltar que muitos dos usos hoje tão cultuados pelos puristas originaram-se do modo de falar de uma forma alegadamente inferior do Latim: exemplificando, as formas "noscum" e "voscum", estigmatizadas por volta do século III, por fazerem parte do chamado "latim vulgar", originaram respectivamente as formas "conosco" e "convosco".
       Outra constatação que merece destaque é o fato de que as línguas variam num mesmo tempo, ou seja, qualquer língua (qualquer uma!) apresenta variedades que são deflagradas por fatores já bastante estudados, como as diferenças geográficas, sociais, etárias, dentre muitas outras. Por manter um posicionamento científico, a linguística não faz juízos de valor acerca dessas variedades, simplesmente as descreve. No entanto, os linguistas, pela sua experiência como cidadãos, sabem e divulgam isso amplamente, já desde o final da década de sessenta do século passado, que essas variedades podem ter maior ou menor prestígio. O prestígio das formas linguísticas está sempre relacionado ao prestígio que têm seus falantes nos diferentes estratos sociais. Por esse motivo, sabe-se que o desconhecimento da norma de prestígio, ou norma culta, pode limitar a ascensão social. Essa constatação fundamenta o posicionamento da linguística sobre o ensino da língua materna.
       Independentemente da questão didático-pedagógica, a linguística demonstra que não há nenhum caos linguístico (há sempre regras reguladoras desses usos), que nenhuma língua já foi ou pode ser "corrompida" ou "assassinada", que nenhuma língua fica ameaçada quando faz empréstimos, etc. Independentemente da variedade que usa, qualquer falante fala segundo regras gramaticais estritas (a ampliação da noção de gramática também foi uma conquista científica). Os falantes do português brasileiro podem fazer o plural de "o livro" de duas maneiras: uma formal: os livros; outra informal: os livro. Mas certamente nunca se ouviu ninguém dizer "o livros". Assim também, de modo bastante generali zado, não se pronuncia mais o "r" final de verbos no infinitivo, mas não se deixa de pronunciar (não de forma generalizada, pelo menos) o "r" final de substantivos. Qualquer falante, culto ou não, pode dizer (e diz) "vou comprá" para "comprar", mas apenas algumas variedades diriam 'dô' para 'dor'. Estas últimas são estigmatizadas socialmente, porque remetem a falantes de baixa extração social ou de pouca escolaridade. No entanto, a variação da supressão do final do infinitivo é bastante corriqueira e não marcada socialmente. Demonstra-se, assim, que falamos obedecendo a regras. A escola precisa estar atenta a esse fato, porque precisa ensinar que, apesar de falarmos "vou comprá" precisamos escrever "vou comprar".  E a linguística ao descrever esses fenômenos ajuda a entender melhor o funcionamento das línguas o que deve repercutir no processo de ensino.
       Por outro lado, entendemos que o ensino de língua materna não tem sido bem sucedido, mas isso não se deve às questões apontadas. Esse é um tópico que demandaria uma outra discussão muito mais profunda, que não cabe aqui.
       Por fim, é importante esclarecer que o uso de formas linguísticas de menor prestígio não é indício de ignorância ou de qualquer outro atributo que queiramos impingir aos que falam desse ou daquele modo. A ignorância não está ligada às formas de falar ou ao nível de letramento. Aliás, pudemos comprovar isso por meio desse debate que se instaurou em relação ao ensino de língua e à variedade linguística.

terça-feira, 17 de maio de 2011

A polêmica criada por quem não sabe interpretar o que lê e não tem autoridade científica para opinar e tenta manipular a opinião pública por meio da mídia

A polêmica, totalmente desnecessária, sobre uma seção de um livro didático, Por uma Vida Melhor, destinado ao programa de Educação de Jovens e Adultos, evidencia o quanto a mídia tem a "denegrir" bons trabalhos de estudos da linguagem real, da linguagem viva. Não se trata de ensinar o errado, como a imprensa e os gramaticistas tradicionais querem fazer crer; o que havia e há no livro é uma demonstração das especificidades do falar e do escrever, tanto na variante padrão quanto na variante popular. Isso não é o ensinar o errado, isso é analisar a fala e suas nuances linguísticas, sua gramática diferenciada da escrita.


O mais deplorável dessa situação é ver jornalistas, que parecem terem compreendido e interpretado qualquer outra coisa que não o que realmente foi proposto pelo texto, entrevistarem as pessoas menos preparadas para opinar a respeito. Imprensa é coisa séria, pois é formadora de opinião. Inteirar-se adequadamente sobre a ciência que está em discussão é dever de um jornalismo sério e competente, mas fazer um "furdunço" e colocar na "fogueira" da inquisição midiática algo totalmente avalizado por estudos fundamentados  e mais que comprovados, isso é irresponsabilidade.


Infelizmente, neste caso, o que se percebe é um posicionamento da mídia e dos gramaticistas tradicionais como guardiões da norma culta, como se esta fosse a única existente ou que deveria existir, e a total desconsideração da variante popular. O livro não propõe que todos passem a falar “errado”, o livro mostra é o adequado e o inadequado em determinadas situações reais de uso. Neste ponto, a perspectiva da autora do livro é bastante lúcida e não se deixa afetar pelas falsas verdades pregadas nos meios de comunicação em massa, muito menos considera a gramática como sendo a própria língua, esquecendo que a gramática faz parte da língua, mas que, no entanto, é apenas uma de seus constituintes.


          Segue um texto interessante que debate a questão de um ponto de vista esclarecedor e científico, porque francamente, amanhecer e ver o Alexandre Garcia (Bom Dia Brasil, 17/05/2011) tecer uma crítica a respeito do suposto "erro", crítica aliás totalmente equivocada, tendo em vista que partiu de uma falácia, é demais para meu bom senso...



A variação linguística e o ensino de Língua Portuguesa - Coleção Viver, Aprender Imprimir E-mail
Nota dos autores da Coleção Viver, Aprender sobre questionamento sobre o uso da norma culta e a norma popular no ensino de Língua Portuguesa.


Viver, Aprender
Em 13 de maio de 2011

O ensino da norma culta x norma popular

Por Heloisa Cerri Ramos

Um item que está presente no volume “Por uma vida melhor”, da Coleção Viver, Aprender, 2º segmento do Ensino Fundamental, na seção de Língua Portuguesa, publicada pela Editora Global, está provocando estranhamento entre professores e não professores. Corresponde ao capítulo 1, de Língua Portuguesa, “Escrever é diferente de falar”.

Esse capítulo discute a diferença entre aprender a falar uma língua e aprender a escrever essa mesma língua. Aprendemos a linguagem oral (informal) desde que nascemos, ouvindo os outros falarem. O ensino para esta modalidade da língua não se dá pela sistematização. Não é necessário ir para a escola para aprender a falar. Já para aprender a escrever é preciso que alguém ensine. Intencionalidade e sistematização são necessárias para o ensino da linguagem escrita .

O capítulo chama a atenção para algumas características da linguagem escrita e para uma variedade da Língua Portuguesa (existem inúmeras outras): a norma culta, também conhecida como norma de prestígio. Pretende defender que cabe à escola ensinar as convenções ortográficas e as características da variedade linguística de prestígio justamente porque isso é valorizado no mundo do trabalho, da produção científica e da produção cultural. E ainda que o domínio da norma de prestígio não se dá de um dia para o outro, mas de modo gradual, constante e pela intensa prática e reflexão sobre seus usos.

Na p. 14, “A concordância entre as palavras”, apresenta-se como as palavras concordam em gênero e número. A seção fala da importância desse princípio da língua para a atribuição de sentidos, uma vez que a concordância ajuda a indicar a relação que existe entre determinadas palavras. Exemplifica como isso se dá na norma culta e mostra que na norma popular pode acontecer de maneira diferente. Assim, a frase: “Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.”, onde ocorre concordância de todos os elementos que se relacionam com a palavra central “livros”, pode ser dita na variedade popular: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. Na variedade popular, basta que a palavra “os” esteja no plural para indicar mais de um referente. Um falante da Língua Portuguesa, ao escutar alguém falar “os livro”, vai entender que a frase se refere a mais de um livro. Isso porque a nossa língua admite esta construção. Não admitiria, no entanto, “livro os ilustrado”. Nenhum falante, escolarizado ou não, falaria assim.

Na p. 15, continua: “Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro’?. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. ” Aqui o importante é chamar a atenção para o fato de que a ideia de correto e incorreto no uso da língua deve ser substituída pela ideia de uso da língua adequado e inadequado, dependendo da situação comunicativa. Como se aprende isso? Observando, analisando, refletindo e praticando a língua em diferentes situações de comunicação. Quando há conhecimento das muitas variedades da língua, é possível escolher a que melhor se encaixa a um contexto comunicativo.

Aprende-se a falar e a escrever a norma de prestígio praticando-a constante e intensamente. Decorar regras ou procurar palavras no dicionário têm importância para determinadas situações pontuais, mas não garantem que alguém aprenda a escrever com fluência e adequação, em diferentes situações comunicativas. É dever da escola e direito do aluno aprender a escrever, a ler e a falar os diversos gêneros textuais que circulam na sociedade em que vivemos.

O mundo contemporâneo exige pessoas capazes de usar a língua eficientemente para ler, escrever e falar tanto nas relações interpessoais, como no trabalho, nos estudos, nas redes sociais, na defesa de direitos, nas práticas culturais e até no lazer.

É um direito de todos os cidadãos ter essa formação linguística competente. É dever da escola a responsabilidade de promover tal fomação, especialmente dos profissionais do ensino da alfabetização e da Língua Portuguesa.
* Os livros da Coleção Viver, Aprender, 2º segmento do Ensino Fundamental, seção de Língua Portuguesa, publicados pela Editora Global, têm como fundamento os documentos do Ministério da Educação (MEC) para o Ensino Fundamental regular e Educação de Jovens e Adultos (EJA) e levam em conta as Matrizes que estruturam as avaliações (ENCCEJA – Exame Nacional de Certificação de Jovens e Adultos).

Variação linguística

Por Cláudio Bazzoni

Marcos Bagno, professor do Departamento de Linguística da Universidade Federal de Brasília, começa o artigo “Os dois lados dos ’erros de Português’” afirmando que a “velha doutrina do erro, tão arraigada em nossa cultura”, trata de “uma idealização nebulosa de correção linguística” e que o uso que não está consagrado como “norma culta” (o uso que não está abonado nas gramáticas normativas e nos dicionários) simplesmente “não existe” ou “não é português”. Sírio Possenti, professor associado no Departamento de Linguística do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL-Unicamp), em seu livro Por que [não] ensinar gramática na escola (2008, 18ª reimpressão, Mercado de Letras) afirma que é fundamental considerar a distinção entre linguística e erro linguístico: “diferenças linguísticas não são erros, são apenas construções ou formas que divergem de um certo padrão”; “são erros aquelas construções que não se enquadram em qualquer das variedades de uma língua.”

A variação linguística é um fenômeno inerente a todas as línguas vivas. Um falante de português, independentemente de sua escolaridade, sabe e usa a língua materna para interagir em várias situações comunicativas nos grupos sociais com que convive. Por isso o “correto” e o “errado”, nas diversas enunciações linguísticas, devem ser relativizados. Assumindo o ponto de vista da gramática normativa, teremos erro em tudo que fugir à variedade que foi eleita como exemplo de boa linguagem. Assumindo o ponto de vista de uma gramática descritiva, só teremos erro na ocorrência de formas ou construções que não fazem parte, de maneira sistemática, de nenhuma das variantes da língua.

Há usos da língua portuguesa, há variedades que, por serem igualmente um fenômeno sociocultural, são valorizadas de modo diferente pela comunidade de falantes.


Um livro didático de Português que ensina a falar errado…
Que explicações vão dar sobre isso?

Por Mirella Cleto

Um dos volumes da coleção “Viver, aprender”, que consta do PNLD EJA 2011, foi apontado como “livro que ensina aluno a falar errado”, em matéria publicada pelo Portal iG. O que motivou o tratamento foi a presença de três frases no seu capítulo 1. São elas: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”; “Nós pega o peixe”, “Os menino pega o peixe”. O que elas estariam fazendo em um livro didático de Português?

Descrevendo como se dá a concordância em uma determinada variedade da língua: a variedade popular – depois de já ter sido descrito como ela ocorre na variedade de prestígio. Em nenhum momento o capítulo se referiu à variedade popular como “errada”. Nem poderia, visto que a noção de erro, quando se descreve a língua, significa algo específico: “a ocorrência de formas ou construções que não fazem parte, de maneira sistemática, de nenhuma das variantes de uma Iíngua”. As palavras são de Sírio Possenti (professor associado no Departamento de Linguística da Unicamp), em seu livro Por que [não] ensinar gramática na escola (2008, 18ª reimpressão, Mercado de Letras). É ele quem esclarece:

“Uma sequência como “os menino”, cuja pronuncia sabemos ser variável (uzmininu, ozminino, ozmenino etc.), que seria cIaramente um erro do ponto de vista da gramática normativa, por desrespeitar a regra de concordância, não é um erro do ponto de vista da gramática descritiva, porque construções como essa ocorrem sistematicamente numa das variedades do português (nessa variedade, a marca de pluralidade ocorre sistematicamente só no primeiro elemento da sequência – compare-se com “esses menino”, “dois menino” etc.). Seriam consideradas erros, ao contrário, sequências como “essas meninos”, ”uma menino”, “o meninos”, “tu vou”, que só por engano ocorreriam com falantes nativos, ou então na fala de estrangeiros com conhecimento extremamente rudimentar da Iíngua portuguesa.”

Para os estudiosos da língua, trata-se de um consenso. Porém é sabido que não é essa a razão da polêmica em torno de um livro de Português voltado à Educação de Jovens e Adultos. A questão geradora de debate é o fato de existir um valor social agregado aos usos da língua (e de ser a escola o espaço privilegiado para seu aprendizado, ser o livro didático o recurso convencional para esse fim).

Nas palavras de Marcos Bagno (professor do Departamento de Linguística da Universidade Federal de Brasília):

“[...] do ponto de vista sociocultural, o “erro” existe, e sua maior ou menor “gravidade” depende precisamente da distribuição dos falantes dentro da pirâmide das classes sociais, que é também uma pirâmide de variedades linguísticas. Quanto mais baixo estiver um falante na escala social, maior número de “erros” as camadas mais elevadas atribuirão à sua variedade linguística (e a diversas outras características sociais dele). O “erro” linguístico, do ponto de vista sociológico e antropológico, se baseia, portanto, numa avaliação negativa que nada tem de linguística: é uma avaliação estritamente baseada no valor social atribuído ao falante, no seu poder aquisitivo, no seu grau de escolarização, na sua renda mensal, na sua origem geográfica, nos postos de comando que lhe são permitidos ou proibidos, na cor de sua pele, no seu sexo e outros critérios e preconceitos estritamente socioeconômicos e culturais.” [...]

[...]

O erro é uma moeda, e como toda moeda, ele tem duas faces: uma face linguística e uma face sociocultural. Como já disse, do ponto de vista estritamente linguístico não existe erro na língua, uma vez que é possível explicar cientificamente toda e qualquer construção linguística divergente daquela que a norma-padrão tradicional cobra do falante. Mas, do ponto de vista sociocultural, o erro existe, sim, e não podemos fingir que não sabemos do peso que ele tem na vida diária dos falantes.” (Fonte: artigo “Os dois lados dos ’erros de Português’ ”)

A coleção buscou aliar essas duas faces. Não desconsiderou a legitimidade de uma variedade popular, descrevendo-a segundo um critério intrinsecamente linguístico. Por outro lado, não ocultou as implicações de seu uso. Escrevem seus autores:

Você pode estar se perguntando: “Mas eu posso falar ‘os livro’?”

“Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.”

A liberdade para escolher demanda o conhecimento das possibilidades. Por isso, com a finalidade de tornar o funcionamento da variedade urbana de prestígio mais familiar ao aprendiz – jovem ou adulto –,foram propostos no capítulo que abriga essa discussão exercícios relativos à aquisição da língua escrita e da variedade socialmente prestigiada. É só consultar.

Por fim, o capítulo segue o está estabelecido no Edital PNLD EJA 2011, p. 45, sobre o trabalho com a oralidade:

“A linguagem oral, que o aluno chega à escola dominando satisfatoriamente, no que diz respeito a demandas de seu convívio social imediato, é o instrumento por meio do qual se efetivam tanto a interação educador-aluno quanto o processo de ensino-aprendizagem. Será com o apoio dessa experiência prévia que o aprendiz não só desvendará o funcionamento da língua escrita como estenderá o domínio da fala para novas situações e contextos, inclusive no que diz respeito a situações escolares como as exposições orais e os seminários.”

Na mesma página, sobre o trabalho com os conhecimentos linguísticos, o Edital recomenda “considerar e respeitar as variedades regionais e sociais da língua, promovendo o estudo das normas urbanas de prestígio neste contexto sociolinguístico”.

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Nota dos autores da Coleção Viver, Aprender sobre questionamento sobre o uso da norma culta e a norma popular no ensino de Língua Portuguesa.

Confira a nota da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secadi-MEC) - Secadi-MEC esclarece

Fonte: http://www.acaoeducativa.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=2602&Itemid=2