sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CONTO: A Gaiola de Vidro


A Gaiola de Vidro
Magna Campos
“É necessário sair da ilha para ver a ilha.
Não nos vemos se não saímos de nós”
 (José Saramago. In:
O Conto da Ilha Desconhecida)

“E nenhum Grande Inquisidor tem prontas tão terríveis torturas como a ansiedade tem;
 e nenhum espião sabe como atacar mais inteligentemente o homem de quem ele suspeita, escolhendo o instante em que ele está mais fraco; ou sabe onde colocar armadilhas em que ele será pego e enredado, como a ansiedade sabe; e nenhum juiz é mais esperto e sabe interrogar melhor, examinar, acusar como a ansiedade sabe, e nunca deixa a vítima escapar, nem através de distrações, nem através de barulhos, nem divertindo, nem brincando,
nem de dia, nem de noite..."
(Soren Kierkegaard. In: O Conceito de Angústia)


Certa manhã, acordou disposto. Aquilo lhe parecia tão surreal que sentiu uma tontura leve ao se levantar da cama.
Já nem se lembrava mais de há quanto tempo não acordava antes das oito da manhã, que não fosse para ir ao banheiro e voltar para o ninho isolador das perturbações e desmaiar-se num não-sono dopado de calmantes e ansiolíticos.
Mal do novo século ou não, o fato é que, há mais de dois anos, abatera sobre ele uma terrível sensação de desrealização e de angústia, aliadas à uma taquicardia repentina, promotoras de episódios intermináveis de choro sem motivos aparentes, que o levaram a uma peregrinação a vários médicos especialistas. A cada novo exame entregue, a esperança de saber o que havia de errado com sua saúde e o que era possível fazer para “consertá-la” o mais rapidamente possível.
Pena sempre ouvir o mesmo laudo inacreditavelmente idêntico em seu teor aos demais: tudo bem com seu coração, não encontrei nenhuma anomalia; ... tudo bem com seu estômago, vesícula, pâncreas e fígado, não encontrei nenhum problema com eles; ... com seus pulmões, uma maravilha; ...nenhum problema neurológico ou circulatório, tudo bem com você...
Mas, como tudo bem? Não, não estava nada bem, meu Deus!
Mal conseguia manter-se de pé no trabalho, e, mesmo assim, experimentando as piores sensações já vividas nas, agora, longuíssimas jornadas semanais. Carregava-se sofridamente ao longo dos dias, parava constantemente para colocar as mãos no peito e tentar acalmar o coração acelerado, que resolvia disparar, sufocando-o.
Pior mesmo era ter de trancar-se no banheiro da repartição e chorar o choro mais doído que já lhe ocorrera. Era não conseguir ordenar àquele dilúvio todo que findasse. E, nesses momentos, chorava... como uma mãe amorosa chora ao perder o seu bebê para a morte. Mas ele... Ele não havia perdido ninguém, por que então aquela dor incompreensível e desesperadora lhe tomava? O que estava acontecendo consigo? E por que as “porcarias” dos médicos não encontravam o que havia errado em seu organismo? Também, revoltava-lhe o fato de ter tantos especialistas em mindinhos, mas não ter mais o especialista da mão toda.
O plano de saúde já começara a “vetar” a liberação de alguns exames, com restrição de quantidade anual, devido aos inúmeros feitos no último mês.
Um dia, ao sair para o trabalho, apressado como sempre, Affonso sentiu uma dor aguda no peito. Mesmo assim, prosseguiu até o ponto de ônibus e tomou a condução para o trabalho, mas precisou parar antes. Não suportou o abafamento e as dores que lhe deixaram zonzo. Na calçada, ao descer, sentou-se. Vendo que não havia recurso, caminhou com dificuldade até uma farmácia próxima e pediu algo para aliviar seu mal-estar.
O farmacêutico vendo que poderia ser algo mais grave, já que Affonso reclamava pontadas no peito, chamou uma ambulância e o aconselhou a ir para um hospital.
As dores o sufocavam, seu estômago estava mareado e a boca muito seca. Affonso sentia uma aflição danada em fechar os olhos, pois sentia a morte eminente...
No hospital, feito alguns exames e constatado que não havia nada errado com seu coração, nem nos exames laboratoriais de emergência, o médico indicou ao rapaz que procurasse pelo Dr. Paulo dos Santos, neurologista e especialista em depressão.
Aquilo lhe caíra como uma verdadeira bomba. Jamais acreditara que depressão fosse uma doença, ainda mais que ocorresse com pessoas normais, sempre tendeu a acreditar que era um mal que afetava só às pessoas mais frágeis psicologicamente, ou às que não tinham equilíbrio mental, ou, então, às apáticas por natureza. No fundo, depressão mais lhe parecia, até aquele momento, uma fraqueza e não uma doença de fato.
Talvez por esse seu pré-conceito desconhecedor da verdade sobre a doença, tão mal compreendida no senso comum, não aceitara a indicação do plantonista que lhe socorrera no hospital.
Dois dias depois, ao retornar do trabalho, sentia-se tão mal que se deitou de terno e gravata, tal qual chegara. Chorou até os ouvidos se tamparem de tanta pressão pelo inchaço da narina e dos olhos. Aquela foi sem dúvida a pior noite de sua vida, desde sempre. Era pouco mais de 08:00h da manhã, quando desesperado, ligou para o telefone do médico que lhe fora indicado e chorou implorando um horário ainda naquele dia.
A secretária retornou a ligação pouco depois e disse que havia conseguido uma consulta emergencial para ele no fim da tarde. Avisou ainda que aquele médico só atendia na modalidade particular, pois era muito solicitado. E que também era preciso levar outros exames realizados recentemente, caso os tivesse. Antes de desligar, porém, a secretária o inquiriu: _ O senhor tem condições de vir sozinho?
Affonso respondeu inseguro que sim, tinha, e que pagaria o que fosse necessário, mas precisava de um alívio para o mal que estava o matando. Desligado o telefone, sentiu-se tão agoniado, não sabia se resistiria até à hora da consulta. Suas dores eram imensas e o abafamento trazido pela angústia sufocava-o, fazendo os minutos parecerem horas, tão longo se aparentavam.
No consultório do Dr. Paulo dos Santos, entrou um verdadeiro trapo humano: um homem que mal conseguia explicar o que sentia sem chorar sofridamente. Entregou a grande pasta com todos os exames que havia realizado no último mês e pediu: _ Doutor, pelo amor de Deus, me cure! Não aguento mais isso.
Depois de alguns exames, ali mesmo no consultório o médico constatou:
 _ Pelo que você me relatou, Sr. Affonso, e pelos sintomas que tem apresentado, eliminadas as outras possibilidades clínicas, creio tratar-se de um quadro de estresse avançado que culminou numa depressão já bastante notável.
Desta vez não se aguentou, desabou ali mesmo, na sala do médico. _ Como assim, depressão, doutor? Sou um cara novo, tenho boa estrutura mental, sempre tive boa saúde, trabalho muito.
Foi então que o médico – destes saídos diretamente da ficção – pacientemente lhe explicou de forma científica o que era a depressão, doença que se deve, em alguns casos, aos distúrbios nas substâncias químicas produzidas pelo organismo, afetando os neurotransmissores, e o que ela poderia provocar no organismo da pessoa, sendo esta jovem ou velha, homem ou mulher.
Fatigado pela busca por uma resposta e frente a uma aparente realidade, Affonso rendeu-se, talvez um pouco revoltado, ao tratamento proposto: doses diárias de calmantes e outras de ansiolíticos...
Bom seria se todas as gaiolas invisíveis que nos prendem, fossem abertas assim: rápida e mecanicamente. Mas as engrenagens dos portões e celas humanos são muito mais complexas que as mais sofisticadas tecnologias artificiais.
Os remédios, mesmo em altas doses, aliviavam um pouco as dores no peito, a taquicardia, a sensação de não-existência. Mas o alívio momentâneo seguia-se de uma expansão da tristeza e da melancolia que o absorviam por completo.
Seu cansaço existencial era imenso e ainda o perturbava, sentia vontade de morar de vez na cama e de acabar-se ali. As coisas mais banais da vida tornaram-se pesos e frustações. Não havia mais dia e noite, havia angústia, simplesmente! Sentia-se ainda vivo, mas fracamente vivo.
E as crises de choro?
Essas, só souberam aumentar com o tempo. Envergonhava-se de não se conter, de ter se tornado um “maricas” sem causa, tamanho a choradeira. Por isso, afastara-se de todos a sua volta, isolara-se, mesmo em meio à multidão. A única pessoa que o via era a faxineira, duas vezes por semana, mesmo assim, mal se falavam. Ele... trancado no quarto escuro a maior parte do tempo.
Não lhe importava mais se era domingo, terça ou qualquer outro dia da semana. Todos eram longuíssimos e perturbadoramente angustiantes. A essa altura, obviamente, incapacitado para o trabalho, vivia do benefício salarial pago pelo pedido de afastamento de suas funções. Pelo menos aqui, esse benefício foi concedido...
Naqueles duros dias-noites de sofrimento, não foram poucas as vezes em que desejou exterminar a sua própria vida. E tentara... não fosse a faxineira encontrá-lo desacordado pela manhã e chamar a emergência...o desespero captaria mais um na multidão.
Nada mais fazia sentido, tudo que mais prezava fora-lhe saindo aos poucos das lembranças e das alegrias. O pessimismo o inquiria pelo seu fracasso, pela sua fraqueza, pela sua incapacidade de enfrentar à vida. Sentia-se um ridículo aleijão humano.
No espelho, a figura de um homem abatido, envelhecido, fraco e triste... tão diferente do rapaz altivo e bem apessoado da foto, acima do espelho, que era ele mesmo, apenas alguns anos antes. Sentia-se um espectro de gente!
Foram muitas as tentativas de tratamento. Experimentara vários tipos de calmantes e de ansiolíticos... Alguns um tanto promissores, outros ainda mais terríveis em seu organismo. Mas sempre ligado a eles, pois, de alguma forma, os comprimidos eram a sua única fonte de alívio, ainda que por curtos intervalos. Sem eles, a vida se tornaria impossível naqueles tempos de tortura intensa.
Felizmente, o moinho do tempo não para, e assim como engole o que é bom, engole também o que é mau, e eis que aquela manhã havia algo de diferente. Acordara de verdade, e até conseguia ouvir o barulho dos carros lá na rua. Nem mais se dava conta, há muito, de nada que fosse exterior, pois durante todo aquele tempo que “frequentou” o seu próprio velório, encerrado pela doença, em seu quarto-mundo-reduzido, perdera a noção do lá fora.
Passada a vertigem que a retomada da percepção do mundo causara-lhe, sentiu vontade-de-ver-e-sentir-o-sol. Foi então que abriu as cortinas – também se esquecera de que seu apartamento tinha janelões de vidro –, e arreganhou as vidraças, colocando toda a sua cabeça para ser inundada pela brisa fresca daquela manhã ensolarada. Gostou tanto da sensação que pareceu ter o sol só para si.
O ar em seus pulmões ardia-lhe de tão fresco. Deixou-se sentir àquela experiência tão simples e tão distante, abriu todos os seus sentidos, espreitou os ouvidos, rompeu a muralha, depois de tanto tempo só conseguindo olhar para dentro, para a escuridão que se lhe abatera, cego à própria cegueira.
Lá embaixo na rua, o rapaz que entrega gás tocava sem parar o interfone do prédio ao lado. O ônibus, no ponto abaixo, abarrota-se ainda mais de gente, e segue como uma lata de sardinha humana. As pessoas seguiam apressadas sabe-se lá para onde e por que razão.
No relógio, são 07:47h da manhã de quinta-feira, 22 de maio de 2010. Exatamente, dois anos, três meses e sete dias depois de sentir-se tomado pela angústia sufocante, pelo coração aflitivamente disparado e de ter tido a sua primeira crise, incontrolável, de choro.
Finalmente, a gaiola de vidro abrira-se...

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Diálogo entre pós-modernidade, sujeito e leitura: o processo discursivo e o virtual

Por: Ms. Magna Campos
RESUMO: Na pós-modernidade, a leitura encontra-se enredada com outros espaços que configuram um novo local para o texto e novas textualidades, portanto, novos espaços de significação. Tais espaços, promovidos pelas novas TICs, têm proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de significação.

PALAVRAS-CHAVE: Leitura, pós-modernidade, novas textualidades.

LEIA O TEXTO DIRETAMENTE NA HIPERTEXTUS REVISTA DIGITAL (UFPE)
:



quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Discurso de Saudação à Patrona Cora Coralina


Discurso de saudação a Cora Coralina
Por: Magna Campos
(Discurso de posse na Academia de Letras do Brasil)
Em primeiro lugar, agradeço a todos os membros da Academia de Letras do Brasil- unidade Mariana pela possibilidade de integrar a esse grupo e de fazer parte dessa Casa, para nela ocupar a cadeira de nº 18. Cadeira essa que escolhi ter por patrona a poetisa e contista Cora Coralina.
Cora nasceu Ana Lins dos Guimarães Peixoto, em 1889, em Vila Bôa de Goyas, e fez de sua relação com a vida um motivo a ser escrito em seus versos livres, tecido no caminho das pedras de sua existência. Pois é ela mesma, por meio de uma descrição poética no poema Das Pedras, que se diz como sendo aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida removendo pedras e plantando flores.
Uma mulher que só conseguiu publicar seu primeiro livro já no tarde da vida, viúva e vestida de seus cabelos brancos; com mais de 70 anos... E que, mesmo tendo cursado apenas até a antiga 3ª série do grupo, não se deixou engolir pela hostilidade dos familiares e pela falta de estímulos sociais e econômicos para ser literata. Cora, que sentia no fundo de seus reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo e que, ainda assim, SOBREVIVEU, recompondo-se aos bocados, dos rígidos preconceitos do passado. Recriando-se sempre, sempre graças aos olhos inquietos de criança que não a abandonaram jamais e também às muitas leituras feitas ao longo de sua trajetória. A escola da vida, diz Cora, suplementou-me as deficiências da escola primária. E foi assim, já em seu 3º livro publicado, abrindo caminhos difíceis, que ela nos chega:
[abro aspas]
Sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem menção honrosa.
Nenhuma láurea.
[fecho aspas]
E pede passagem na vida literária brasileira...
Cora expressou com singularidade, em seus escritos, o seu tempo e a ligação com seu meio. Imprimiu aos seus textos a marca do oral e dos causos interioranos. Uma verdadeira contadora de histórias, não da história oficial, registrada nos anais da cidade de Goiás, mas a história dos que não têm voz; a sabedoria dos anônimos.
Mulher que, quando indagada, respondia: _ Cora, uma poetiza? Não! Cora uma mulher da luta, uma doceira! E que dizia escrever porque sua mão coçava, em virtude das palavras que precisavam ser “cristalizadas”, tal qual seus famosos doces. Uma mulher que se entrega ao ofício e à identidade de doceira como réplica às dificuldades encontradas para publicar seus textos. É dela mesma essa afirmativa descrita no poema Quem é Você:
“Sendo eu mais doméstica do que intelectual,
Não escrevo jamais de forma consciente e raciocinada,
E sim impelida por um impulso incontrolável...
[Pois] Nasci para escrever, mas, o meio,
O tempo, as criaturas,
Contra-marcaram a minha vida.”

Em suas memórias, delineadas em versos, Cora abre os porões de suas lembranças e se lê como sendo Aninha; aquela do Rio Vermelho, da Casa Velha da Ponte...uma mulher marcada pela coragem, pelo fazer, pelo contar, pelo viver, e tão lindamente descrita na seguinte passagem:
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
E trago comigo todas as idades.

Demonstra-nos no livro Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha, admirável entendimento do poder da escrita, especialmente da sua, ao afirmar: Quando eu morrer, não morrerei de tudo.
Estarei sempre nas páginas deste livro,
Criação mais viva da minha vida interior em parto solitário.
Assim ela partiu, levou seus doces, mas nos deixou os versos. E hoje, nesta oportunidade singular, eu a saúdo, Cora Coralina! Esteja, também, revivida aqui, nesta cadeira que honrosamente a terá por patrona. Brinda-nos com sua doçura poética, com sua mão coçante, com seu olhar inquieto de criança, com sua modéstia e sensibilidade, enfim, com seu gesto criador. Ajuda-nos a indagar sempre por quantas Aninhas corajosas, pouco estudadas, existirão esparrodadas pelo Brasil afora? Quantas Aninhas cujas histórias e poesias não conseguiram vencer as pedras do caminho, assim como você vencera, levantando das pedras que lhe esmagavam a pedra rude dos seus versos? Por isso, Cora, dignifica, com sua conquistas, essa cadeira, em nome das muitas mulheres, jovens ou velhas, das quais não escutamos sequer os sussurros e, também, em nome de todas as que se arriscam nas letras, removendo pedras e plantando flores.

Discurso de Saudação ao neo-acadêmico Paulo José de Oliveira


Por: Magna Campos
 
Caríssima presidente da ALB- Mariana, Andreia Donadon-Leal;
Caro Vice-Presidente da ALB-Mariana, J. S. Ferreira;
Presidente Executivo e Editor da ALB-Mariana, J.B.Donadon-Leal;
 E Secretário-Geral da ALB-Mariana, Gabriel Bicalho;
A todos vocês os meus cumprimentos, nesta tarde de sábado!


Escrever [caros ouvintes] é uma arte que brota n’alma. É uma arte que é alimentada no coração, impulsionada pela mente e grafada na mão”. 

É com essa primeira citação ao trecho de um editorial da Folha Literária Formiga em Letras, escrito por Paulo José de Oliveira, também conhecido pelo pseudônimo de PAJO, que inicio o discurso de saudação ao neoacadêmico. Guiada muito mais pelo calor de sua palavra criação, que pelo “frio” de um currículo que, nem sempre, consegue representar satisfatoriamente o sujeito de quem se fala. Afinal, como afirma o próprio neoacadêmico, ainda no editorial mencionado, é “no escrever que se traduz o eu, mesmo que seja nas entrelinhas, ou na forma de rabisco”.
E escrever, especialmente na literatura, seria realmente ter a possibilidade de criar um outro viver paralelo, no qual o mundo não tem mais que ser ordenado por CRONOS, o deus do tempo, linear, torturante e esvaecente. Na literatura, o caos pode se dissipar, o feio pode se embelezar, o instante pode se eternizar, e em lugar de CRONOS, pode ser consagrado KAIRÓS, o tempo das coisas e não do efeito sobre as coisas. Não mais o tempo da espera, mas o da esperança. O tempo não consumido pelo relógio, mas experimentado em seus instantes-eternos e acima de tudo: saboreado!
Mas literatura não é um luxo escapista, como pode parecer, é criação! E é graças aos desejos e anseios que ela inspira, às mentalidades que [ela] criou e que continua criando, e à humanização do real, que a sociedade ainda é capaz de se libertar de ditaduras, sejam elas econômicas, religiosas, científicas e por que não, cultural, já que vivemos o ápice da sociedade consumista, e nele, a cultura torna-se ela própria um objeto cultural desejável ao consumo, muitas vezes irrefletido, promíscuo e banalizado. É o valor do consumo que se impõe ao próprio valor da coisa consumida.
Afinal, como propõe o escritor sul-americano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2010, Mario Vargas Llosa, ao dizer que:
Quem dúvida que a literatura, além de nos levar ao sonho da beleza e da felicidade, nos alerta contra toda forma de opressão, pergunte por que todos os regimes empenhados em controlar a conduta dos cidadãos, do berço ao túmulo, a temem tanto, a ponto de estabelecerem regras de censura para reprimi-la, e vigiam com tanta suspeita os escritores independentes.
E o literato Paulo José de Oliveira atento a esse poder de revolução e de subversão da literatura, imprime no poema Capitalismo Selvagem, publicado no jornal O Pergaminho, de outubro de 2010, a sua visão crítica sobre as relações de poder instaurados pelo capitalismo atual, quando diz:
Como um dos frutos da ambição
[ o capitalismo] é cria da ganância humana
Que como um canto de sereia
Desapropria a dignidade.
[...]
No capitalismo a educação não é certeza do saber
[...]
O sistema de cotas não é garantia de inclusão
E o fruto do sistema continua sendo a discriminação.

Crítica que se mistura ao saudosismo em outro texto, agora em prosa, no conto Meu Palácio Colonial, do livro Ponto de Partida, quando o eu-lírico do escritor, ao rememorar um local importante de sua juventude e não mais existente, nos escreve:
Hoje, ao retornar saudoso naquele rincão antes sagrado, deparo-me com o domínio do mercado e do capital selvagem.
Nenhum vestígio mais existe, daquele meu palácio medieval. Apenas o capim de um latifúndio, mais que especulativo, em uma triste paisagem deformada pelo progresso.
A voz indignada com o sistema, capaz de captar um dos importantes papéis da literatura, é daquele que além de ser Turismólogo formado pela Fatur/UNIFOR/MG, Educador Ambiental, pela UNB, e Técnico em Eventos, pelo IFET, é também Presidente e Gestor do Sindicato dos Trabalhadores em Serviços de Saúde de Formiga – tendo escrito o Guia Histórico da Saúde: do Germinar ao Frutificar; livro que conta a história dos 15 anos do sindicato –; além disso, é ativista eco- ambiental, humanista, sociocultural, fortemente atuante na cidade de Formiga e região, e Membro Vitalício da Academia Formiguense de Letras.
Mas a mesma voz engajada, apontada anteriormente, dá lugar à voz escorreita e lúdica do trovador, que é delegado representante da UBT (União Brasileira de Trovadores). Trova essa que muitas vezes é auto referencial, como  pode ser vista nos versos abaixo:  
Busquei a rima na fonte
Na inspiração de minh’alma
Juntei as letras, um monte!
_ Fiz uma trova sem trauma.

O seu “buscar na fonte” lembra-me outra afirmação, agora, de Gustave Flaubert, o genial escritor de Madame Bovary e de Uma Alma Simples, [que] fez ao dizer que “escrever é uma maneira de viver”. E lendo o poema Fieis Amigos, de autoria do neoacadêmico, é possível vislumbrar o quanto a escrita tornou-se necessária para seu estar e ser no mundo. A esse respeito, ouçamos as palavras do próprio PAJO:
A caneta tornou-se amiga
Extensão fiel de meu corpo
Assim, como o fino papel
Aliado silencioso
absorve
Meus desabafos, meus desejos,
Meus sonhos e inspirações.

Essa outra maneira de viver que a literatura nos possibilita, sugerida por Flaubert e demonstrada na intimidade por Paulo, nos versos lidos, precisa ser levada à frente, precisa ser valorizada, buscada e disseminada o tempo todo e em todo lugar. E ensinada pela vivência especialmente às novas gerações. Pois como bem disse o já citado Mario Vargas Llosa:
Um mundo sem literatura seria um mundo sem desejos nem ideais nem desacatos. Um mundo de autômatos desprovidos do que faz com que o ser humano seja verdadeiramente humano: a capacidade de sair de si mesmo e mover-se em outro, em outros, modelados com a argila de nossos sonhos.

Assim, para que você, Paulo, possa também nos ajudar a moldar com a argila de seus sonhos um mundo com mais literatura, com mais arte, que é, em nome da Academia de Letras do Brasil-Mariana, uma instituição que tem como objetivo a difusão da cultura e o incentivo às Letras e Artes – e que vem construído suas tramas com palavras e obras que nos entrelaçam cada vez mais à sociedade e não com paredes, que nos isolem do mundo – [ é em nome dessa instituição] que lhe dou as boas-vindas a esse grupo, para tomar posse como membro efetivo desta academia, da cadeira de nº 23, cuja patrona escolhida será sua conterrânea e literata, Maria Ruth de Souza Pinto.
Saudações e Muito Obrigada!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Aldravias: as linguagens líquidas na produção do texto poético


Ms. Magna Campos


A modernidade líquida, termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman para nomear a era atual, denominada por alguns de pós-modernidade e por outros de hipermodernidade, é a fase em que tudo aquilo que era sólido e estático se derreteu ou está se derretendo, não para formar novos sólidos – já que não se prende ao tempo e não se fixa espaço – mas para fluir liquefeito pelas novas vias que se lhe apresentam ou que vão sendo configuradas numa sociedade que se transmuda a todo instante.
A metáfora da liquidez advém da observação de que
os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para eles, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas por um momento. (BAUMAN, 2001, p.8) grifos do autor

É essa extraordinária mobilidade dos fluidos que os associa à ideia de leveza. Pois, é possível associar leveza à mobilidade e à inconstância. Dessa forma, 
descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas. Os fluidos se movem facilmente. Eles "fluem", "escorrem", "esvaem-se", "respingam", "transbordam", "vazam", "inundam", "borrifam", "pingam"; são "filtrados", "destilados"; diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos - contornam certos obstáculos, dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são alterados - ficam molhados ou encharcados. (BAUMAN, 2001, p.8) grifos do autor

Sendo assim, a metáfora do líquido é escolhida por Bauman para designar a nossa era, uma vez que capta a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras na história da modernidade. Uma fase em que tudo é fugaz, transitório, múltiplo, heterogêneo e fragmentado.
O sinal digital que fluidifica espaços e bits e os transmite em questões de segundo passa a ser o exemplo máximo da inexorabilidade do espaço e da presencialidade do agora em nossas vidas.
Nessas configurações, no século XXI, a produção artística e suas linguagens também estão submetidas a esses imperativos socioculturais, nos quais a incerteza e a transitoriedade atravessam-na. Na liquefação, desvanece a distinção entre o novo e o conhecido, e o gesto de criar e o de destruir passam a fazer parte de uma mesma moeda, já que a ideia de imobilidade aterroriza por decretá-la candidata ao esquecimento e ao abandono.
A ideia da liquidez faz fundir o tradicional e o não tradicional e daí surgir um híbrido que não é um ou outro, mas um e outro ao mesmo tempo, imiscuído numa linguagem líquida e movente. A discussão entre o valor estético de uma obra agora se mescla à função desta obra, sem diminuir-lhe ou agregar-lhe valor. Simplesmente, configuram uma nova sintaxe, que por ser híbrida, carece de novas categorias de análise que se pautem naquilo que une e não naquilo que separa. A singularidade está no hibridismo e não na separação entre a vanguarda e a contemporaneidade.
Há uma tendência das produções artísticas de centrarem-se nos acontecimentos passageiros, por isso efêmero. E o poema líquido-moderno não contraria essa tendência que é fruto de seu engajamento em seu tempo, ou melhor, nas fragmentações de tempo de nossa era.
Mas o que seria esse poema líquido-moderno? 
Talvez, a indefinição seja a melhor das respostas, uma vez que o líquido não permite mais do que conformações momentâneas, antes que assuma nova forma. Mas se poderia tentar designá-la como um poema que consiga envolver as características da liquidez não apenas em sua condição de produção, como também em sua linguagem. Que o seu dizer-fazer seja sua própria definição.
Tem-se assim, em nosso ponto de vista, um exemplo máximo dessa sintaxe líquido-moderna naquele que figura no novo estilo poético intitulado, por seus proponentes, de Aldravia. 
A Aldravia conceituada no Jornal Aldrava, onde foi primeiramente publicado, como se tratando de
um poema sintético, capaz de inverter ideias correntes de que o poema está num beco sem saída. O poema é constituído numa linométrica de até seis palavras-verso. Esse limite de seis palavras se dá de forma aleatória, porém preocupada com a produção de um poema que condense significação com um mínimo de palavras [...] (DONADON-LEAL, 2010, n. 88, p. 3)
Já nessa conceituação, podem-se pinçar algumas influências da modernidade líquida na caracterização poética. 
Apresentam-se a ideia da condensação da linguagem e das ideias, pois numa sociedade movente, é preciso ser e tornar-se leve, desfazer-se de tudo que atravanque a mobilidade; é preciso “dinamitar” o espaço para ganhar “tempo”, que é sempre escorregadio, que é sempre não mais que um instante.
Também, têm-se a aleatoriedade das palavras e de sua organização, pois as palavras que já se dizia há muito que “desmanchavam-se no ar”, agora “escorrem”, “esvaem-se”, “transbordam” e “inundam” com grande facilidade o texto em que se apresentam.
No encontro de um possível obstáculo “o poema estaria num beco sem saída”, dissolve o poema tradicional e o reconfigura com uma roupagem mais atual.
Outra característica da aldravia, que proporia como característica líquido-moderna deste tipo de poema, refere-se ao fato de, aparentemente, afastar-se da representação como “fotografia”, que fixa e congela a cena no momento e no espaço, para aproximar-se do vídeo digital, capaz de captar e de em milésimos de segundos transformar em movimento, em fluidez. Observe-se essa tendência nas Aldravias a seguir:

se

sol


noite

aqui



                                                                         Andreia D. Leal


salto

de

cova

nascimento

do

artista



                                                                        Andreia D. Leal


sigo

cigano

em

busca

da

poesia



                                                                         JS Ferreira


Nos poemas acima, as minúsculas e a ausência de pontuação podem “confundir” nossos sentidos, pois não encontramos as habituais marcações de onde inicia – faltam as iniciais maiúsculas, que já nos convencionamos a encontrar no início de um texto – e faltam os pontos finais – que sinalizaria o seu término. Sinalizando mais para o fluxo e para o entremeio discursivo, do que o início e o fim, propriamente dito.
Além disso, a condensação de significados em poucas palavras evoca à produção de sentidos em caleidoscópio e não na linearidade, pois alude ao movimento e não a estaticidade de uma cena. Diria que condensam linguagens do tempo, fluidificando imagens, fotos, em fluxos contínuos. Fluxos de signos. Condensação propositadamente aludida em:

aldravia

meu

verso

universo

em

poesia



                                                                     Gabriel Bicalho



É deixada ao leitor a provocação e não a mensagem. Por isso, um poema metonímico e não metafórico. A abertura final é parte de sua concepção.
Aliás, a metonímia também seria uma ideia bastante apropriada para a era líquido-moderna, uma vez que a fragmentação se apossou das pessoas, do tempo e dos espaços. Pois como propõe o próprio Bauman, no livro Identidade, ter uma identidade fixa hoje, nesse mundo fluído, seria de certo modo uma decisão suicida. Estamos na era da construção múltipla de eus. E novamente, ilustro essa fragmentação com outra aldravia:


minhas

porções

diárias

metonímias

de

mim



                                                                   J.B. Donadon-Leal


A novidade aqui não está, apoiando-me em Santaella (2007, p.97), no fato da identidade ser múltipla, pois a identidade humana é, por natureza, múltipla. A novidade está, isso sim, em tornar essa verdade evidente e na possibilidade de encenar e de jogar com ela até o limite máximo da transmutação.
É a nudez do poema como “supersigno” da linguagem que me parece buscar-se na modernidade líquida. Nesse contexto, a aldravia parece despir-se diante dos olhos do leitor, para recompor-se em sua mente. Para daí, novamente desmanchar-se, fluir num movimento incessante.
Essa liquidez apresenta como essência o movimento, contínuo e incessante. O movimento perpétuo, a liquidez fugidia que não se permite fixar, pausar. Se há liquidez é porque há movimento, de todos os tipos, pois, como afirma o próprio Bauman, o lugar, na modernidade líquida, perdeu sua fixidez de antes, “buscando rochas, as âncoras encontram areias movediças” (BAUMAN, 2001, p.70).
         Esses poucos exemplos servem para apontar, ainda que modestamente, o quanto a linguagem é versátil e o quanto as condições socioculturais e históricas fazem parte da instauração de cada “novo” discurso, seja ele poético ou não. E assim, mostram-nos o quanto a leitura e a escrita estão imersos em seu tempo e são engendrados e engendrantes por/de ele.


Referências Bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. São Paulo: Editora Zahar, 2001.
______. Identidade. São Paulo: Editora Zahar, 2005.
SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
DONADON-LEAL, J. B. Aldravia – nova forma, nova poesia. Jornal Aldrava. Mariana, ano XI, n. 88, p.3, dez./2010.
Aldravias. Jornal Aldrava. Mariana, ano XI, n. 88, dez./2010.



Texto publicado no Jornal Aldrava ISSN: 1519-9665 - Periódico indexado.: http://www.jornalaldrava.com.br/N92_Jul_Ago_2011/N92_Jul_Ago_2011.pdf