sexta-feira, 18 de novembro de 2011

CONTO: A Gaiola de Vidro


A Gaiola de Vidro
Magna Campos
“É necessário sair da ilha para ver a ilha.
Não nos vemos se não saímos de nós”
 (José Saramago. In:
O Conto da Ilha Desconhecida)

“E nenhum Grande Inquisidor tem prontas tão terríveis torturas como a ansiedade tem;
 e nenhum espião sabe como atacar mais inteligentemente o homem de quem ele suspeita, escolhendo o instante em que ele está mais fraco; ou sabe onde colocar armadilhas em que ele será pego e enredado, como a ansiedade sabe; e nenhum juiz é mais esperto e sabe interrogar melhor, examinar, acusar como a ansiedade sabe, e nunca deixa a vítima escapar, nem através de distrações, nem através de barulhos, nem divertindo, nem brincando,
nem de dia, nem de noite..."
(Soren Kierkegaard. In: O Conceito de Angústia)


Certa manhã, acordou disposto. Aquilo lhe parecia tão surreal que sentiu uma tontura leve ao se levantar da cama.
Já nem se lembrava mais de há quanto tempo não acordava antes das oito da manhã, que não fosse para ir ao banheiro e voltar para o ninho isolador das perturbações e desmaiar-se num não-sono dopado de calmantes e ansiolíticos.
Mal do novo século ou não, o fato é que, há mais de dois anos, abatera sobre ele uma terrível sensação de desrealização e de angústia, aliadas à uma taquicardia repentina, promotoras de episódios intermináveis de choro sem motivos aparentes, que o levaram a uma peregrinação a vários médicos especialistas. A cada novo exame entregue, a esperança de saber o que havia de errado com sua saúde e o que era possível fazer para “consertá-la” o mais rapidamente possível.
Pena sempre ouvir o mesmo laudo inacreditavelmente idêntico em seu teor aos demais: tudo bem com seu coração, não encontrei nenhuma anomalia; ... tudo bem com seu estômago, vesícula, pâncreas e fígado, não encontrei nenhum problema com eles; ... com seus pulmões, uma maravilha; ...nenhum problema neurológico ou circulatório, tudo bem com você...
Mas, como tudo bem? Não, não estava nada bem, meu Deus!
Mal conseguia manter-se de pé no trabalho, e, mesmo assim, experimentando as piores sensações já vividas nas, agora, longuíssimas jornadas semanais. Carregava-se sofridamente ao longo dos dias, parava constantemente para colocar as mãos no peito e tentar acalmar o coração acelerado, que resolvia disparar, sufocando-o.
Pior mesmo era ter de trancar-se no banheiro da repartição e chorar o choro mais doído que já lhe ocorrera. Era não conseguir ordenar àquele dilúvio todo que findasse. E, nesses momentos, chorava... como uma mãe amorosa chora ao perder o seu bebê para a morte. Mas ele... Ele não havia perdido ninguém, por que então aquela dor incompreensível e desesperadora lhe tomava? O que estava acontecendo consigo? E por que as “porcarias” dos médicos não encontravam o que havia errado em seu organismo? Também, revoltava-lhe o fato de ter tantos especialistas em mindinhos, mas não ter mais o especialista da mão toda.
O plano de saúde já começara a “vetar” a liberação de alguns exames, com restrição de quantidade anual, devido aos inúmeros feitos no último mês.
Um dia, ao sair para o trabalho, apressado como sempre, Affonso sentiu uma dor aguda no peito. Mesmo assim, prosseguiu até o ponto de ônibus e tomou a condução para o trabalho, mas precisou parar antes. Não suportou o abafamento e as dores que lhe deixaram zonzo. Na calçada, ao descer, sentou-se. Vendo que não havia recurso, caminhou com dificuldade até uma farmácia próxima e pediu algo para aliviar seu mal-estar.
O farmacêutico vendo que poderia ser algo mais grave, já que Affonso reclamava pontadas no peito, chamou uma ambulância e o aconselhou a ir para um hospital.
As dores o sufocavam, seu estômago estava mareado e a boca muito seca. Affonso sentia uma aflição danada em fechar os olhos, pois sentia a morte eminente...
No hospital, feito alguns exames e constatado que não havia nada errado com seu coração, nem nos exames laboratoriais de emergência, o médico indicou ao rapaz que procurasse pelo Dr. Paulo dos Santos, neurologista e especialista em depressão.
Aquilo lhe caíra como uma verdadeira bomba. Jamais acreditara que depressão fosse uma doença, ainda mais que ocorresse com pessoas normais, sempre tendeu a acreditar que era um mal que afetava só às pessoas mais frágeis psicologicamente, ou às que não tinham equilíbrio mental, ou, então, às apáticas por natureza. No fundo, depressão mais lhe parecia, até aquele momento, uma fraqueza e não uma doença de fato.
Talvez por esse seu pré-conceito desconhecedor da verdade sobre a doença, tão mal compreendida no senso comum, não aceitara a indicação do plantonista que lhe socorrera no hospital.
Dois dias depois, ao retornar do trabalho, sentia-se tão mal que se deitou de terno e gravata, tal qual chegara. Chorou até os ouvidos se tamparem de tanta pressão pelo inchaço da narina e dos olhos. Aquela foi sem dúvida a pior noite de sua vida, desde sempre. Era pouco mais de 08:00h da manhã, quando desesperado, ligou para o telefone do médico que lhe fora indicado e chorou implorando um horário ainda naquele dia.
A secretária retornou a ligação pouco depois e disse que havia conseguido uma consulta emergencial para ele no fim da tarde. Avisou ainda que aquele médico só atendia na modalidade particular, pois era muito solicitado. E que também era preciso levar outros exames realizados recentemente, caso os tivesse. Antes de desligar, porém, a secretária o inquiriu: _ O senhor tem condições de vir sozinho?
Affonso respondeu inseguro que sim, tinha, e que pagaria o que fosse necessário, mas precisava de um alívio para o mal que estava o matando. Desligado o telefone, sentiu-se tão agoniado, não sabia se resistiria até à hora da consulta. Suas dores eram imensas e o abafamento trazido pela angústia sufocava-o, fazendo os minutos parecerem horas, tão longo se aparentavam.
No consultório do Dr. Paulo dos Santos, entrou um verdadeiro trapo humano: um homem que mal conseguia explicar o que sentia sem chorar sofridamente. Entregou a grande pasta com todos os exames que havia realizado no último mês e pediu: _ Doutor, pelo amor de Deus, me cure! Não aguento mais isso.
Depois de alguns exames, ali mesmo no consultório o médico constatou:
 _ Pelo que você me relatou, Sr. Affonso, e pelos sintomas que tem apresentado, eliminadas as outras possibilidades clínicas, creio tratar-se de um quadro de estresse avançado que culminou numa depressão já bastante notável.
Desta vez não se aguentou, desabou ali mesmo, na sala do médico. _ Como assim, depressão, doutor? Sou um cara novo, tenho boa estrutura mental, sempre tive boa saúde, trabalho muito.
Foi então que o médico – destes saídos diretamente da ficção – pacientemente lhe explicou de forma científica o que era a depressão, doença que se deve, em alguns casos, aos distúrbios nas substâncias químicas produzidas pelo organismo, afetando os neurotransmissores, e o que ela poderia provocar no organismo da pessoa, sendo esta jovem ou velha, homem ou mulher.
Fatigado pela busca por uma resposta e frente a uma aparente realidade, Affonso rendeu-se, talvez um pouco revoltado, ao tratamento proposto: doses diárias de calmantes e outras de ansiolíticos...
Bom seria se todas as gaiolas invisíveis que nos prendem, fossem abertas assim: rápida e mecanicamente. Mas as engrenagens dos portões e celas humanos são muito mais complexas que as mais sofisticadas tecnologias artificiais.
Os remédios, mesmo em altas doses, aliviavam um pouco as dores no peito, a taquicardia, a sensação de não-existência. Mas o alívio momentâneo seguia-se de uma expansão da tristeza e da melancolia que o absorviam por completo.
Seu cansaço existencial era imenso e ainda o perturbava, sentia vontade de morar de vez na cama e de acabar-se ali. As coisas mais banais da vida tornaram-se pesos e frustações. Não havia mais dia e noite, havia angústia, simplesmente! Sentia-se ainda vivo, mas fracamente vivo.
E as crises de choro?
Essas, só souberam aumentar com o tempo. Envergonhava-se de não se conter, de ter se tornado um “maricas” sem causa, tamanho a choradeira. Por isso, afastara-se de todos a sua volta, isolara-se, mesmo em meio à multidão. A única pessoa que o via era a faxineira, duas vezes por semana, mesmo assim, mal se falavam. Ele... trancado no quarto escuro a maior parte do tempo.
Não lhe importava mais se era domingo, terça ou qualquer outro dia da semana. Todos eram longuíssimos e perturbadoramente angustiantes. A essa altura, obviamente, incapacitado para o trabalho, vivia do benefício salarial pago pelo pedido de afastamento de suas funções. Pelo menos aqui, esse benefício foi concedido...
Naqueles duros dias-noites de sofrimento, não foram poucas as vezes em que desejou exterminar a sua própria vida. E tentara... não fosse a faxineira encontrá-lo desacordado pela manhã e chamar a emergência...o desespero captaria mais um na multidão.
Nada mais fazia sentido, tudo que mais prezava fora-lhe saindo aos poucos das lembranças e das alegrias. O pessimismo o inquiria pelo seu fracasso, pela sua fraqueza, pela sua incapacidade de enfrentar à vida. Sentia-se um ridículo aleijão humano.
No espelho, a figura de um homem abatido, envelhecido, fraco e triste... tão diferente do rapaz altivo e bem apessoado da foto, acima do espelho, que era ele mesmo, apenas alguns anos antes. Sentia-se um espectro de gente!
Foram muitas as tentativas de tratamento. Experimentara vários tipos de calmantes e de ansiolíticos... Alguns um tanto promissores, outros ainda mais terríveis em seu organismo. Mas sempre ligado a eles, pois, de alguma forma, os comprimidos eram a sua única fonte de alívio, ainda que por curtos intervalos. Sem eles, a vida se tornaria impossível naqueles tempos de tortura intensa.
Felizmente, o moinho do tempo não para, e assim como engole o que é bom, engole também o que é mau, e eis que aquela manhã havia algo de diferente. Acordara de verdade, e até conseguia ouvir o barulho dos carros lá na rua. Nem mais se dava conta, há muito, de nada que fosse exterior, pois durante todo aquele tempo que “frequentou” o seu próprio velório, encerrado pela doença, em seu quarto-mundo-reduzido, perdera a noção do lá fora.
Passada a vertigem que a retomada da percepção do mundo causara-lhe, sentiu vontade-de-ver-e-sentir-o-sol. Foi então que abriu as cortinas – também se esquecera de que seu apartamento tinha janelões de vidro –, e arreganhou as vidraças, colocando toda a sua cabeça para ser inundada pela brisa fresca daquela manhã ensolarada. Gostou tanto da sensação que pareceu ter o sol só para si.
O ar em seus pulmões ardia-lhe de tão fresco. Deixou-se sentir àquela experiência tão simples e tão distante, abriu todos os seus sentidos, espreitou os ouvidos, rompeu a muralha, depois de tanto tempo só conseguindo olhar para dentro, para a escuridão que se lhe abatera, cego à própria cegueira.
Lá embaixo na rua, o rapaz que entrega gás tocava sem parar o interfone do prédio ao lado. O ônibus, no ponto abaixo, abarrota-se ainda mais de gente, e segue como uma lata de sardinha humana. As pessoas seguiam apressadas sabe-se lá para onde e por que razão.
No relógio, são 07:47h da manhã de quinta-feira, 22 de maio de 2010. Exatamente, dois anos, três meses e sete dias depois de sentir-se tomado pela angústia sufocante, pelo coração aflitivamente disparado e de ter tido a sua primeira crise, incontrolável, de choro.
Finalmente, a gaiola de vidro abrira-se...