sexta-feira, 29 de julho de 2011

O que pode ser considerado um “mau” leitor? (Especialmente na universidade)


Autora: Ms. Magna Campos
Para se sair [...]
e romper o círculo vicioso,
 talvez se devesse passar
 a algo que alguém,
também ironicamente,
poderia chamar de círculo virtuoso.
(SANT’ANNA, 2006)


Muitas pessoas acreditam que leitura se aprende durante a fase de alfabetização. Isso demonstra um entendimento muito vago do que seja efetivamente leitura. Pois ler não se refere apenas à capacidade de decodificar uma língua, seja ela a língua portuguesa ou qualquer outra.
A decodificação é apenas uma das dimensões ou um dos níveis de leitura, talvez o mais básico deles. Mas ler é, também, saber relacionar texto ao seu contexto tanto linguístico imediato, chamado dentro da Análise do Discurso, de co-texto, quanto ao contexto situacional em que o texto, leitor e a leitura estão inseridos, este sim, chamado verdadeiramente de contexto.
Essa segunda dimensão ou nível de leitura constitui a compreensão do texto. Para compreender um texto é preciso mais do que se pautar somente naquilo que está explícito no texto, é preciso ouvir também os silêncios que o constituem, seus implícitos, suas entrelinhas.
O leitor que, além de decodificar consegue também compreender um texto, já é um leitor mais preparado que aquele que apenas reproduz o que está na superfície textual. Todavia, esse ainda é um leitor que precisa evoluir bastante para alcançar o nível de leitura desejável ao leitor proficiente, diríamos.
Mais do que decodificar e compreender um texto, é preciso compreender que a leitura envolve condições de produção, ou seja, ela não está dissociada de seu entorno: cultural, social, político, histórico e linguístico.
Essa reflexão deriva do fato de que a produção de sentidos, operada na/pela leitura, depende da ação de um sujeito, não como um ser individualizado, fechado em si mesmo, mas como ser constituído pelo tecido social.
O contexto social é importante na ação da leitura não por determinar, mas por influenciar o que poderíamos entender como uma coprodução de sentidos operada na relação entre o sujeito-leitor e o sujeito-autor mediada pelo texto. Entendemos que esse contexto não se presta somente a ser pano de fundo para o sentido, mas participa de sua constituição, historicizando-o, situando-o. E, no mesmo alinhamento, entendemos que o sujeito-leitor é aquele que produz sua leitura a partir de sua inscrição nessa dinâmica, como sujeito social.
Essa postura nos leva a considerar, além da dinâmica social – que joga na constituição da linguagem e, consequentemente, do sujeito –, os atravessamentos do social pela ideologia e pela historicidade e a impossibilidade de se compreender a linguagem autonomamente, pautando-se na crença de significados anteriores ao discurso (texto) e à história, conforme propõe Orlandi (1988).
Um texto não surge do nada, descolado da época, dos modos de dizer-fazer de uma determinada cultura. Os conteúdos (discursos) tratados nos textos dialogam aberta ou implicitamente com outros textos que formam aquilo que é chamado de outras vozes constitutivas da textualidade. Pois como diria Mikhail Bakhtin, no famoso livro, Estética da Criação Verbal, nenhum sujei-to/enunciado – entenda-se por extensão, texto – é um Adão bíblico. Isto é, nenhum texto lida com palavras “virgens”, dotadas de sentidos sempre os mesmos e sempre iguais, independemente do tempo e do espaço em que ocorram. Portanto, o texto pode ser considerado um elo em uma cadeia de discursos.
Alcançar esse nível desejável de leitura, o nível mais profundo, o da interpretabilidade – interpretação – demanda um trabalho atento do leitor não só pensando na palavra dita do texto e nos seus não-ditos, mas também no seu entorno sociocultural, histórico e linguístico. É preciso relacionar o texto a outros textos já lidos ou ouvidos, relacioná-lo a suas condições de produção, para, a partir de então, conseguir emitir criticamente um ponto de vista sobre os temas e conceitos nele apresentados.
Todavia, aquele que se poderia considerar como “mau” leitor não consegue, muitas vezes, sequer extrapolar o nível da decodificação, repetindo mecani-camente as palavras do texto, sem lhes perceber as ironias, às insinuações, as ambiguidades propositais, os jogos de significado e de sentidos propostos pelo texto. Outras vezes, não atenta para as relações estabelecidas pelas partes que compõem-no, suas interdependências.
Outros, ainda que compreendam o texto, não se propõem, na verdade, a estabelecerem nenhum diálogo com a temática arrolada pelo autor que não aquele intermediado ou, por que não dizer, ofuscado por outra coisa que não seja seus próprios desejos interiores ou pelo conhecimento do senso comum. Parecem desconsiderar todo o conhecimento científico da área que estão estudando ou de outras áreas que tenham conhecimento, para esvaziarem suas falas com enunciados e opiniões reproduzidos incansavelmente na mídia ou por pessoas não conhecedoras daquela área de ciência.
Não se trata aqui de diminuir os valores dos conhecimentos populares, trata-se, antes, da necessidade de travar-se um diálogo, muitas vezes tenso, entre o senso comum e o conhecimento científico, buscando ampliar as leituras de mundo dos leitores, acrescentando-se novas perspectivas menos ingênua, mais problematizadoras e mais produtivas intelecto e socialmente.
 Se o leitor não se torna sujeito daquilo que lê, ou seja, não se apropria do texto, de sua relação com o outro sujeito-autor, para indagar-lhe, para estabelecer um diálogo por meio dessa textualidade ou para ser indagado por meio dele, dificilmente conseguirá aproveitar satisfatoriamente qualquer material lido, seja de cunho científico ou não.
Cada uma dos níveis de leitura mencionados traz em seu bojo uma postura determinada para o sujeito-leitor. Tomada como uma forma de decodificação, a leitura nada mais é do que uma apreensão de um código seja ele verbal ou não verbal, no qual quem lê percebe literalmente o texto, sem um trabalho de contextualização maior. Se vista como uma forma de compreensão, o horizonte do leitor se amplia, podendo agora usar o contexto como uma forma de participação no sentido do texto, contudo ainda limitada. E, por último, se percebida como uma forma de interpretação, a leitura rasga os limites do próprio texto e adentra o discurso, solicitando do leitor que dialogue, que relacione, que perceba o texto não como um começo e um fim, mas como um entremeio que tem um já-dito e um há se dizer.
Não se pode perder de vista, também, que não se lê da mesma forma qualquer tipo de texto. É preciso estabelecer-se uma “espécie” de pacto ou de protocolo de leitura adequado a cada gênero textual, ou seja, a cada formato. Muitos textos são lidos para aprender, muitos outros para divertir-se, outros para orientar e assim sucessivamente, dependendo do objetivo da leitura.
Se na leitura feita por lazer, o fluxo pode ser contínuo, comumente dispensada até de marcações no canto do texto; na leitura para aprender, nem sempre se consegue ler continuamente: é preciso ler “parando”, tentando relacionar os argumentos, as ideias centrais e secundárias, as sucessões temporais. É necessário ir preenchendo os “vazios”, processando os pressupostos, os subentendidos, os acarretamentos e as inferências, nos quais o autor conta com o conhecimento do leitor para a complementação. Não raro é preciso fazer anotações no meio ou no canto do texto, marcando similaridades ou distanciamentos de outros autores que tratam da mesma temática, a fim de ir construindo-se o entendimento textual.
Ler para aprender é ir fazendo anotações; identificando os pontos-chave, os argumentos e os contra-argumentos desenvolvidos, a forma como o autor apresenta esses argumentos; anotando as palavras e as expressões que não compreendeu; tentando perceber naquilo que se sabe sobre as condições de produção do texto – quem, quando, onde, porque ou para quê – o que podem “dizer” sobre a temática e o ponto de vista desenvolvido; percebendo a “hierarquia” dos enunciados dentro do texto; qual a relação entre o escrito e o não escrito, entre o verbal e o não verbal, no caso do texto apresentar imagens, por exemplo; é estabelecer a relação do assunto com a área tratada.
Ainda, carece de o aluno-leitor perguntar-se – o que sei sobre isso? O que já estudei sobre isso? – para ter condições de analisar, avaliar, julgar por parâmetros plausíveis, científicos e objetivos o material lido. Saindo assim do terrível “achismo” que, infelizmente, atravanca o aprendizado de muitos alunos.
Ler um texto para aprender, assim como escrever um texto evidenciando o aprendizado, é um trabalho, não obstante, demorado e que demanda não apenas concentração, mas estabelecimento de correlações variadas. Leitura e escrita não são dons, são competências advindas de um grande e profícuo trabalho, de muito treino. Além disso, ler se aprende lendo e escrever se aprende escrevendo. São competências interligadas, mas não condicionadas uma a outra.
Cabe, então,
sermos atentos aos sentidos produzidos na variedade de textos para que o sujeito apreenda o processo mais do que acumular produtos. Não é uma questão de quantidade, mas de relação de sentidos na formação (qualitativa) de arquivos. (...) O que importa é fazer o sujeito perceber que há relações de sentidos que transitam. Há sentidos que se enredam, que formam filiações. (ORLANDI, 2001, p.71)

Decorre dessa visão da leitura como uma produção de sentidos, engendrada em vários fatores que extrapolam a mera decodificação das palavras, que, a “ancoragem” que o leitor apresenta para servir-lhe ao estabelecimento de um diálogo produtivo e não meramente reprodutivo, é de suma importância para a qualidade da leitura realizada. Por isso, é preciso diversificar os gêneros textuais lidos, as fontes lidas e as referências culturais.
Pois a leitura é o fio condutor dos trabalhos em todas as disciplinas dentro de um curso, criando possibilidades de diálogos entre as diversas áreas curriculares e entre o conhecimento científico e as práticas socioculturais.
Além disso, não se pode considerar o texto, no âmbito da palavra escrita apenas, já que contemporaneamente a noção de texto estende-se a toda ocorrência linguística ou não linguística na qual seja possível a produção de sentidos. Assim, podemos ler um artigo de jornal, uma charge, uma placa de trânsito – seja ela simbólica ou linguística – uma fotografia, uma pintura, uma conversa, um filme etc..
Sendo assim, muda-se o “protocolo” de leitura, no caso de texto não linguístico, mas não muda a necessidade de estabelecerem-se relações que extrapolem a superficialidade do texto e a sua compreensão.
Referência Bibliográfica:
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Fontes, 2003.
ORLANDI, Eni P. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez Editora, 1988.
______. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. A cegueira e o saber. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.


Fonte: CAMPOS, Magna. O que pode ser considerado um "mau" leitor? (Especialmente na universidade). In: ______. Leitura e escrita: nuances discursivo-culturais. Pará de Minas: Virtualbooks, 2011. p.121-129.

TECNOLOGIA COMO MEDIADORA DE SUBJETIVIDADES: O CASO DO SUJEITO-LEITOR

Magna Campos[1]
 Dylia Lysardo-Dias[2]
 
Contextualização
 
O cenário pós-moderno: espaço da ambivalência
 
Muito se tem discutido nos últimos tempos sobre a superação da modernidade por uma fase conseguinte nomeada ora de pós-modernidade[3], ora de modernidade tardia[4], modernidade líquida[5], modernidade reflexiva[6] ou de hipermodernidade[7] e, provavelmente, de outros termos que aqui nos escapam. Encontramos, em nossas pesquisas, algumas definições de pós-modernidade, que ora a opõem à modernidade, ora a vêem como uma continuação da modernidade, ora como uma perspectiva que tudo critica e nada põe no lugar. No esforço de defini-la, as discussões, geralmente, giram em torno das transições paradigmáticas[8] que vêm ocorrendo desde o final do século XX e, especialmente, nesse início de século XXI, o que nos levaria ao questionamento e à reescrita dos ideais da modernidade, tais como: a racionalidade a-histórica, as verdades transcendentais[9], a homogeneidade do sujeito social, a autonomia, dentre outros.
Cumpre aqui discutirmos alguns traços distintivos da pós-modernidade em relação à modernidade, como forma de situarmos o sujeito-leitor dentro deste cenário, uma vez que concebemos a pós-modernidade como uma forma de interrogar a modernidade e de problematizar certas questões por ela trazidas. Nesse ínterim, encontramos em Canclini (2008) uma perspectiva na qual embasamos o nosso olhar sobre esse cenário:
Concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou tendência que substitui o mundo moderno, mas como uma maneira de problematizar os vínculos equívocos que ele amarrou com as tradições que quis excluir ou superar para constituir-se. (CANCLINI, 2008, p.28)
 
Entendemos também, juntamente com Bauman (1999b), que a pós-modernidade não está em oposição à modernidade, mas em ambivalência com ela, criando assim, uma zona fronteiriça entre as duas. Dessa forma, o sujeito-leitor situado nesse entremeio, no espaço da ambivalência, entre a modernidade e a pós-modernidade, produz suas leituras e sentidos a cada momento diferentes, mergulhado nos fios do interdiscurso e na pluralidade de vozes[10]; diante de antigos ou de novos textos e de novos meios para a textualidade.
Importa-nos, no que tange à pós-modernidade, mais detidamente, as questões que abarcam a temática da tecnologia[11] a fim de efetivarmos um esforço de compreensão das subjetividades em jogo com relação ao tema da leitura e da leitura das textualidades relacionadas a essa tecnologia. Consideramos que o grande desenvolvimento tecnológico, especificamente aquele ligado às novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), que vivenciamos nos últimos tempos, bem como a compressão tempo/espaço trazida pelo advento da informatização, mediam mudanças relacionadas à vida sociocultural, política, histórica e, dessa forma, afetam os sujeitos inseridos nesse contexto e as atividades desempenhadas por estes, como é o caso da leitura.
Numa perspectiva discursiva, é possível perceber os atravessamentos das questões sociais na atividade de leitura e na constituição do sujeito-leitor. Por esse motivo, ao inserirmos o sujeito-leitor no contexto da pós-modernidade não o podemos enxergar como imune a todo esse processo de mudança, imune à sócio-história e às práticas discursivas[12] em que atua e que o constituem. Uma vez proposto como um sujeito social, precisamos enxergá-lo, como bem o propõe Coracini (2002; 2005), em sua heterogeneidade, fragmentação, e, para usarmos um termo muito caro à pós-modernidade, em sua fluidez.
Bauman (2001) esclarecendo-nos melhor sobre essa fluidez, defende a tese de que a modernidade[13] é um longo processo de “liquefação” da solidez característica dos tempos pré-modernos. O que a modernidade se propõe é substituir os “sólidos” tradicionais por novos “sólidos”, mais confiáveis, previsíveis e administráveis segundo critérios racionais. O que de fato ocorreu, no entender de Bauman, foi que, ao longo dos tempos modernos, os sólidos se derreteram, ou seja, aqueles conceitos centrais, como por exemplo, emancipação, individualidade, tempo/espaço, os quais deveriam constituir o chão firme dos novos tempos, perderam sua rigidez.
Dentre os tantos sólidos que a modernidade se encarregou de desfazer se encontram as categorias de tempo e de espaço, que a nós interessa bastante, tendo em vista que essa mudança ou liquefação das relações entre essas duas categorias – a qual ocasiona a compressão entre elas – foi ocasionada, em grande parte, pelo desenvolvimento e utilização das novas TIC, como é o caso da internet[14] e das comunicações eletrônicas.  
Bauman (2001) afirma que a modernidade
começa quando o espaço e o tempo são separados da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como  categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-modernos aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da experiência vivida, e presos numa estável e aparentemente invulnerável correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história, tem história por causa de sua ‘capacidade de carga’, perpetuamente em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades de tempo permite ‘passar’, ‘atravessar’, ‘cobrir’ – ou conquistar. O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão de engenho, da imaginação e da capacidade humanas. (BAUMAN, 2001, p.15-16) grifos do autor.
 
No período moderno, tal separação teve como resultado o predomínio do tempo sobre o espaço, pois a modernidade (pesada) é, talvez, mais que qualquer outra coisa, a história do tempo. Decorre dessa dissolução entre tempo e espaço a metáfora do líquido usada por Bauman para definir a atual fase da modernidade em que nos encontramos, pois, segundo o autor, “para os fluidos o que conta é o tempo, e não o espaço, que preenchem apenas momentaneamente” (BAUMAN, 2001, p.8). Por terem uma extraordinária mobilidade e inconstância, associam-se os fluidos à ideia de “leveza” ou “ausência de peso”.
Decorre dessas razões o fato de, conforme Bauman (2001), considerar-se fluidez ou liquidez como metáforas adequadas à natureza da fase em que vivemos, nova na história da modernidade. Enquanto a modernidade sólida colocava a duração eterna como principal motivo e princípio da ação, na modernidade líquida a duração eterna não tem função. O curto prazo substituiu o longo prazo, e fez da instantaneidade o ideal último. Se antes os indivíduos contabilizavam seu tempo e seu espaço a partir do que seu corpo podia fazer; e depois passaram a lidar com o tempo e o espaço que os automóveis produziam – estar a dez minutos de alguém/algum lugar não significa o mesmo para alguém a pé e para alguém motorizado –; agora o espaço dissolve-se, uma vez que por meio de um sinal eletrônico, uma mensagem pode atravessar o mundo em segundos ou frações de segundos[15].
Por esse motivo, Bauman (2001) argumenta na direção de visões fluidas e heterogêneas e muito mais dinâmicas da sociedade contemporânea, construída “no aqui e no agora”. Essas tecidas sob uma trama movente[16], ao contrário de visões duradouras e unificadoras da tradição moderna, baseadas nas verdades universais e na racionalidade, que, supostamente, levariam ao progresso e ao desenvolvimento, amparadas no ideal do Estado-nação.
Uma nova ordem mundial ou de um novo capitalismo, chamada por Bauman (1999b) de nova (des)ordem mundial, que atravessa o mundo, em todas as esferas, por meio da globalização[17], ameaça e enfraquece a fórmula do Estado-nação, por meio dos muitos processos de integração e interpenetração econômica, cultural, tecnológica e ideológica entre os países, ocasionando uma crescente interpenetração de bens físicos e simbólicos entre os territórios e um aumento exponencial dos fluxos globais de pessoas.
Segundo Hall (2004), baseado em Giddens (1990),
a globalização implica um movimento de distanciamento da ideia sociológica clássica da “sociedade” como um sistema bem delimitado e sua substituição por uma perspectiva que se concentra na forma como a vida social está ordenada ao longo do tempo e do espaço. (HALL, 2004, p.67) grifos do autor
 
Isso nos permite pensar que a globalização, com suas configurações em que o tempo é um instante e o espaço é um quase nada, alcança a todos nós, indiferentemente de estarmos mais ou menos engajados no universo global[18]. Tal fato nos leva à conclusão de que o espaço e o tempo são produtos das relações sociais, culturais, adicionadas às políticas e econômicas.
Completa a perspectiva da qual procuraremos falar sobre o sujeito-leitor na pós-modernidade – nesse cenário tecnológico, marcadamente globalizado e globalizante –, uma visão das novas TIC também como algo essencialmente heterogêneo e em constante transformação. Podemos considerar as tecnologias como heterogêneas no sentido de que nascem em contextos heterogêneos, e, especialmente no caso das TIC, no sentido de que misturam ou fazem convergir outras tecnologias, surgidas em outros contextos sócio-históricos.
Por isso, consideramos que uma abordagem da relação sociedade-tecnologia-cultura mais adequada à problemática da leitura deve tomar como pressuposto que a tecnologia, a exemplo da linguagem, tanto influencia os contextos nos quais surge (ou é introduzida), como tem seu sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no espaço pela maneira como é praticada em contextos heterogêneos.
 
 
As novas TIC mediando a produção de subjetividades
 
Partimos do pressuposto de que a subjetividade, conforme apresentado por Woodward (2004, p.55), “é vivida em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade”.Assim, a subjetividade é construída e significada pela interpelação[19] dos atos de linguagem, e estes, por sua vez, encontram-se, no que se refere à contemporaneidade, atrelados às novas Tecnologias de Comunicação e Informação (TCI). Tecnologias essas que se expandem com muita agilidade nos dias atuais, e penetram todo o tecido social, possibilitando o chamado cenário digital.
De acordo com a autora,
 
vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual adotamos uma identidade. Quaisquer que sejam os conjuntos de significados construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como sujeitos. Os sujeitos são, assim, sujeitados ao discurso e devem, eles próprios, assumi-lo como indivíduos que, dessa forma, se posicionam a si próprios. As posições que assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades. (WOODWARD, 2000, p.55)
 
Decorre daí uma importância significativa do papel da tecnologia como mediadora na constituição das subjetividades, haja vista que ela figura como um importante meio para as formas simbólicas, especialmente em tal cenário.
Em nosso entendimento, essa tecnologia terá seu sentido, sua forma e sua função transformados no tempo e no espaço por essas subjetividades. Além disso, consideramos os meios – incluindo-se as novas TIC –  não como fontes de inovações em si, mas como mediações entre novas práticas de comunicação [e informação] e transformações sociais (Cf. MARTÍN-BARBERO, 2001). Esse conceito de mediação[20] nos ajuda a pensar que tecnologia e cultura não estão postas como instâncias isoladas e estáticas que se refletem, mas como dinâmicas que se influenciam mutuamente, portanto, se ela – a tecnologia – é condicionante dessa cultura, é também condicionada por ela,  e ainda, pressupõe a cultura como algo que se transforma constantemente nos e através dos meios.
Nesse cenário ambivalente da atualidade, a identidade é um construto, simbólico e social, fabricada pela marcação da diferença, que ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de exclusão social (Cf. Woodward, 2000, p.39). Nesses processos de fabricação de novas identidades, contudo, na pós-modernidade, não se encontram mais o sujeito como ser fixo, coerente e estável, aquele sujeito unificado e centrado que estabilizava o mundo social, antes, temos aí o sujeito fragmentado, marcado pelas incertezas. Esse deslocamento produz novas formas de posicionamento[21] e provoca mudanças nos conceitos de sujeito e de identidade.
Segundo Hall, a identidade “permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada”, através de processos inconscientes. Por isso, em lugar de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento” (HALL, 2004, p.38). Identificar-se, como podemos deduzir, é identificar-se com a falta do outro e, portanto, dividir-se. A identidade não surge da plenitude interior do indivíduo, mas da falta a ser preenchida pelo nosso exterior – um exterior atravessado pela novas TIC.
Para dar conta do sentido sempre inacabado da identidade, alguns teóricos recorrem ao conceito de différance elaborado por Derrida, pois para este autor, na leitura de Woodward, “o significado é sempre diferido ou adiado; ele não é completamente fixo ou completo, de forma que sempre existe algum deslizamento” (2000, p.28). Assim, a identidade é um tornar-se e aqueles que a reivindicam não se limitam a ser posicionados por ela: “eles seriam capazes de posicionar a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum”. (WOODWARD, 2000, p.28)
Todavia, no que se refere à leitura, se tomarmos como pressuposto que todos os sujeitos-leitores lêem da mesma maneira e não considerarmos a heterogeneidade desses sujeitos, bem como dos textos lidos e dos sentidos produzidos, estamos ao mesmo tempo desconsiderando os processos identitários nos quais esses sujeitos se constituem. Pois, esses processos são construídos ao longo da vida do sujeito-leitor e são marcados pela diferença, conforme propõe Woodward, ao postular que a identidade “não é o oposto da diferença: a identidade depende da diferença” (2000, p.40). Sendo a diferença condição básica para a construção da identidade na própria configuração do sujeito, seja ele leitor ou não, o outro já o constitui.
Portanto, as identidades são multiplamente construídas ao longo dos discursos, das práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas. Nesse sentido, pensando na leitura como uma prática social[22] de significação, embrenhada nas redes discursivas, podemos entender, juntamente com Coracini, que,
ler pressuponha um sujeito que produz sentido, envolvendo-se, dizendo-se, significando-se, identificando-se, abrindo espaço para a subjetividade e para a heterogeneidade que vez por outra rompe a barreira porosa e opacificante das palavras e se deixa representar, de modo imprevisível, pela linguagem[23]. (CORACINI, apud GALLI, p.6)
 
A leitura, assim, torna-se uma forma de identificação e de construir identidades que deixa entrever o sujeito por meio da linguagem, permeado que é pela alteridade e pela fragmentação, não nos esquecendo que esse sujeito é sempre historicamente situado. E a partir do momento em que há a valorização da alteridade e da ideia de construção provisória da identidade por meio da linguagem, e nesse caso, a leitura está subtendida, não se pode negar a relação intercambiante entre sujeito-linguagem (pois ao se dizer o sujeito se diz), sujeito-mundo (ao representar ele se representa) e sujeito-sentido (ao significar ele se significa), envoltos e movimentando-se no limite da ambivalência, não nos esquecendo que essas relações de linguagem.
Ler não pressupõe simplesmente um conhecimento consciente do uso da linguagem; antes, constitui momentos importantes de produção de sentidos que só ocorrem como consequência de uma série de identificações que pressupõem um investimento do sujeito na linguagem.
No entanto, a leitura, contemporaneamente, encontra-se enredada com outros espaços que configuram um novo local para o texto e novas textualidades, possibilitados pelas novas TIC. Esses novos espaços, promovidos pelas novas TIC, têm proporcionado uma crescente multiplicação dos sistemas de significação e de representação, o que implica, para o sujeito-leitor, o aumento de possibilidades de assumir, negar e reivindicar identidades diferentes a cada circunstância deparada, a cada texto que se lhe dá à leitura. Em nosso entendimento, o espaço em que a textualidade ( digital) aparece tem significação , tem materialidade e não é indiferente em seus distintos modos de significar.
Também, devemos atentar, conforme propõe Santaella (2003), para a relação da cultura contemporânea, mediada pelas novas TIC, com a linguagem, na constituição de novas posições para o sujeito, isto é, novos lugares na rede da comunicação, e acrescentamos, da interação social. Pois essas formas de subjetivação na era digital reclamam por novos olhares.
Pensemos, então, nessa relação tecnologia-leitura-subjetividade com o auxílio de um material que conseguimos por meio de uma busca efetuada na internet, em junho de 2008, no banco de imagens do Google, no qual digitamos a expressão “sujeito-leitor+tecnologia”, no sistema de busca do site. Todavia, chamamos a atenção para o fato de que esse é apenas um estudo exploratório, no sentido de que não pretendemos obter, a partir dele, grandes generalizações ou formulações que possam ser estendidas indiscriminadamente a outros casos. Antes, trata-se de uma tentativa de por em prática o poder explicativo das teorizações que tecemos e assim problematizar algumas questões. Ainda é preciso ressaltar que a mesma peça publicitária foi analisada por Nunes (2005) em um artigo sobre inclusão digital, dessa autora aproveitamos a nomeação de sujeito-leitor tecnológico por ela cunhada.
Feito essa ressalva, passemos ao material:
Figura 1: Folder divulgado na campanha de inclusão digital do CDI (Comitê para Democratização da Informática) do Paraná[24].
 
A peça publicitária acima chamou-nos a atenção não só pela configuração do que ela diz, como também e, principalmente, pela forma como diz. Em formato retangular, traz em um segundo plano, a imagem de um rosto sem qualquer designação de gênero, podendo ser de um jovem ou de uma jovem, o qual fita diretamente o interlocutor. À sua frente, em primeiro plano, ocultando e ocupando o lugar de sua boca, há uma janela de navegação na internet[25] com suas ferramentas de navegação: voltar, avançar, atualizar, início, preencher, imprimir e correio, janela essa que funciona como uma tarja preta, tendo em vista que essa janela, além das ferramentas citadas, tem seu corpo – onde geralmente aparecem os textos digitais[26] – preenchido pela cor escura, sem imagem ou palavra alguma. Abaixo e fora dessa janela de navegação, há, em tom imperativo, os seguintes dizeres: “Quem não conhece informática, não tem vez. Nem voz”.
Notamos de início a interdição da fala daquele/a que aparece na imagem, o/a qual tem em seu rosto, a substituição da boca por um mecanismo eletrônico – a janela de navegação. Todavia, esse mecanismo apresenta as ferramentas para seu funcionamento, mas falta-lhe quem as coloque em movimento e funcionamento: o sujeito que saiba operá-las. Interdição porque, numa sociedade permeada, ou diríamos atravessada,  pelas novas TIC, não saber operá-las, a julgar pela peça, é não ter acesso às formas de informação e nem às formas de sociabilidade possibilitadas por ela. Enfim, é não ingressar no processo constitutivo de sentido possibilitado por esse meio, é não ser seu sujeito.
Diferentemente da fala, que no indivíduo é um mecanismo físico, o direito à fala é estabelecido em relação à posição ocupada pelo sujeito no discurso, e tem a ver com as relações de poder estabelecidas em uma cultura. E, no caso da peça, tem direito à fala “apenas os que conhecem informática”, ou seja, os que se tornam leitores[27] de sua textualidade digital. Tendo em vista que as relações de poder são muito importantes na construção de subjetividades, e decorrentemente, de identidades, Woodward nos alerta que “todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído” (2000, p.18-19).  E, assim, essas relações de poder, em nosso exemplo, ajudam a definir uma subjetividade adequada à textualidade digital, que chamaremos aqui de sujeito-leitor-tecnológico, aproveitando a nomeação empregada por Nunes (2005).
Mas partindo do pressuposto de que a linguagem e, como manifestação desta, a leitura, significa e, por isso, nos significa, não podemos nos esquecer, que falar ou ler é estar no sentido com as palavras – ditas, não ditas ou a se dizer –, pois elas significam e nos relacionam com o mundo, com as coisas, com as pessoas, e com nós mesmos. Constituem nossa subjetividade, produzindo sentidos. E dar sentido é considerar o lugar da história e da sociedade. É, também, aceitar que se está sempre no jogo da produção, na relação entre as diferenças e as relações de poder que entram na constituição do sujeito. Portanto, o apetrecho técnico que funciona como uma tarja preta à frente da boca do/a jovem interdita não só suas palavras, mas sua relação plural com os sentidos e com o mundo, interdita o acesso à leitura, por falta de domínio das ferramentas que possibilitam acessar os textos digitais.
A produção da subjetividade que aqui nos interessa, qual seja a do sujeito-leitor-tecnológico, na peça, não tem outra saída: ou aprende a dispor do recurso técnico, que possibilita o acesso à textualidade em questão, ou estará condenada a “não ter voz nem vez” e, assim, à nulidade. Não há opção. E isso é válido para qualquer pessoa, haja vista a indefinição do pronome “quem” utilizado no enunciado.
A autora Woodward nos lembra que,
os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar. (WOODWARD, 2000, p.17)
 
E ainda, que
só podemos compreender os significados envolvidos nesses sistemas [de representação] se tivermos alguma ideia sobre quais posições-de-sujeito eles produzem e como nós, como sujeitos, podemos ser posicionados em seu interior. (WOODWARD, 2000, p.17)
 
 
Nesse caso, as posições-de-sujeito produzidas são: a do incluído – em nossa perspectiva, o sujeito-leitor-tecnológico – criando para isso uma identidade, a do/a jovem esperto/a que não “fica de fora do barco tecnológico e se torna seu navegante”, e, inevitavelmente, a do excluído digital, aquele que não está apto a “embarcar nesse navio”. O incluído, ou seja, aquele que “conhece informática” e é capaz de ler sua textualidade, tem acesso ao dizer e por isso pode se dizer. Em contrapartida, aquele que não a conhece, é interditado, barrado, e, por isso silenciado[28]. No entanto, não podemos nos esquecer que toda subjetividade é construída sempre em relação ao outro, pois o outro  é constitutivo do eu. Decorre daí que podemos, então, concluir que o excluído, o não-sujeito-leitor-tecnológico, é o exterior constitutivo do incluído, é o seu outro. E ambos convivem juntos no mesmo mundo que agrega e segrega pessoas por meio das novas TIC e por meio de seus discursos.
Nesse sentido, ao mesmo tempo que a peça, como forma de representação, define, com seu discurso, que tipo de sujeito devemos ser e como devemos ocupar essa posição-de-sujeito em nossa cultura atravessada pelas novas TIC, não podemos ignorar o papel ativo da instância de recepção, a qual não absorve simplesmente os sentidos que lhe são criados e essas posições. O sujeito da instância da recepção está constantemente estabelecendo negociações de sentido em seu contexto de mediações simbólicas. E, por esse motivo, uma vez que tomamos o pressuposto da heterogeneidade como constitutiva não só da linguagem[29], mas também, da tecnologia e da subjetividade, não nos é possível entender a inclusão ou a exclusão como um estar dentro ou um estar fora de um sistema ou do que se prega desse sistema, conforme propõe a campanha. Por meio da heterogeneidade é possível visualizar que somos inevitavelmente, de alguma forma, incluídos e excluídos ao mesmo tempo. Além disso, a inclusão pode abrir a possibilidade de subverter as relações de poder que tentam homogeneizar todos os incluídos – como tendo vez e voz –, bem como homogeneizar todos os excluídos – destituídos de vez e voz –, impondo-lhes, assim, as necessidades do outro – qual seja, a interpelação social ao consumo, simbólico ou material, das novas TIC. Interpelação esta que, muitas vezes, apagam as diferenças em uma tentativa de ação homogeneizadora da sociedade.  Em outras palavras, incluir-se envolveria, ao mesmo tempo, ter contato com a demanda do outro, e, a partir de então, negociar, estabelecer-se e transformar-se, elaborar as suas próprias demandas e não simplesmente as aceitar passivamente.
Tomamos emprestado de Canclini (2005) uma afirmação feita por ele relativa à globalização, e a transpusemos para o contexto de nossa análise por julgarmos que em certa medida ela nos serve bem. O autor, ao afirmar que, nos dias de hoje,  as diferenças e as desigualdades deixam de ser fraturas a superar, diz que esses termos foram substituídos por dois outros: inclusão e exclusão. Nas palavras de Canclini o predomínio deste vocabulário significa que:
A sociedade, antes concebida em termos de estratos e níveis, ou distinguindo-se segundo identidades étnicas ou nacionais, agora é pensada com a metáfora da rede. Os incluídos são os que estão conectados; os outros são os excluídos, os que vêem rompidos seus vínculos ao ficar sem trabalho, sem casa, sem conexão. (CANCLINI, 2005, p.17)
 
Em nosso caso, os excluídos e, por isso, “desconectados”[30] da rede perdem até mesmo seu direito de dizer e assim “não terão vez” na sociedade – ou será porque não têm vez, não poderão dizer e dizer-se – tem seu espaço de fala invadido pela tonalidade escura da janela de navegação numa possível alusão à sua desconectividade. Não ler o digital é estar desconectado do mundo. “Ou [o sujeito] se adéqua às tecnologias de comunicação [e de informação], ou está fora da possibilidade de pluralizar sentidos e percepções” (NUNES, 2005, [s.p]), na pós-modernidade. Parece que poderíamos, até mesmo, empregar aqui a proposição parodística formulada por Kenneth Gergen – da qual nos dispensaremos de  comentá-la – em que o autor propõe: Estou conectado, logo existo. (apud SANTAELLA, 2007, p.231)
Mas, se adaptar-se ao digital é inserir-se, organizar-se numa rede de informações e de sociabilidade, como dissemos anteriormente, podemos pensar mais uma vez nas teorizações de Bauman (1999a) no que diz respeito a inovações tecnológicas contemporâneas. O autor as relaciona à expansão capitalista e à categoria de consumo. Esta última é por ele considerada como fator de referência e de organização da sociedade pós-moderna. Em sua perspectiva, todas as sociedades sempre consumiram, mas aquilo que caracteriza a sociedade contemporânea como sociedade de consumo é a ênfase dada a esse consumo. Os membros da sociedade moderna definiam suas redes de sociabilidade em torno da capacidade de produção. Já na pós-modernidade, a organização social se dá mais pela capacidade e pelo desejo de consumir do que pelo que cada um de seus membros produz.
Nesse âmbito, a tecnologia digital pode ser entendida, em Bauman (1999a), como mais uma fonte de consumo. A conexão de computadores através da Internet intensificou a possibilidade de consumir e deslocou sua ênfase dos bens materiais para o consumo de informação. Grande quantidade de informação é consumida[31] instantaneamente e a custos baixos, independentemente do local onde é gerada ou recebida. Então, podemos depreender a partir dessa consideração que adentrar o universo da informática ou digital, é consumir além de bens materiais representados pelos artefatos técnicos, como por exemplo, dispositivos digitais e meios de conexão à rede de internet; também os bens simbólicos representados por bibliotecas digitais, ebooks, softwares, websites, bancos de dados, enciclopédias on-line, jornais on-line, serviços de compras, e muitos outros, e tudo isso enredados no formato de informação. Fato que contribui para que alguns estudiosos designem nossa sociedade contemporânea como sociedade de informação ou informacional, como é o caso de Castells, no livro Sociedade em Rede .
Parece-nos assim que, se tomarmos a tecnologia no sentido de mediadora, podemos chegar a noção de que o consumo das novas TIC – seja ele em forma material ou simbólica – ou de seu discurso, é uma espécie de produção da inclusão digital, e, por conseguinte, de produção do sujeito-leitor-tecnológico. Pois essas novas tecnologias parecem prometer um processo de transformação de um modo de ser, num outro, visto que as informações estariam ao alcance de qualquer um, bastando apenas ser um incluído digital, isto é, um leitor da textualidade digital.
No entanto, não podemos enxergar o consumo de informação como uma atividade pacífica e passiva por parte do sujeito – higienizado de todo seu entorno sócio-histórico e cultural – entorno este que é constituído pela mediação das novas TIC. Pois, entendemos que esse sujeito estará no/em constante fluxo de informação, não apenas a recebendo, mas produzindo-a singularmente, em uma negociação constante de sentidos os quais, por sua vez, são circunscritos pela exterioridade, pelo outro. E é nesse jogo, muitas vezes tenso, que as subjetividades, bem como as identidades, podem ser constituídas e estabelecem-se.
 
Referências bibliográficas:
BAUMAN, Zigmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999b.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas. São Paulo: EDUSP, 2008.
CANCLINI, Nestor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados: mapas da interculturalidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.1.
CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Orgs.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Ática, 1998, vol.2.
CORACINI, Maria José (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura. Campinas: Pontes, 2002.
CORACINI, Maria José. Concepções de leitura na (pós-)modernidade. In: CARVALHO, Regina Célia; LIMA, Paschoal (Orgs.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado das Letras, 2005. p.15-44.
GALLI, Fernanda Correa Silveira. O sujeito-leitor e o atual cenário tecnológico e globalizado. Revista Letra Magna, ano 2, n.3, 2005. p.1-13. Disponível em: http://www.letramagna.com/Fernanda_Correa_Silveira_Galli.pdf. Acesso em: 11 jun./2008.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
HALL, Stuart. Da Diáspora Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
NUNES, Maíra. Quem tem vez e voz? Revista Eletrônica Temática. Set/2005. Disponível em: < http://www.insite.pro.br/Artigo%20Ma%EDra%20inclus%E3o.htm>. Acesso em: ago/2008.
 
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA; Tomaz Tadeu (org.). identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2004. pp. 7-72.
SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
 

 
[1] Mestre em Letras (UFSJ), Linha Discurso e Representação Social. 
[2] Pós-doutora em Estudos Linguísticos, professora do programa de Mestrado em Letras do DELAC-UFSJ.
[3] LYOTARD (1998), JAMESON (1997), HALL (2004) e CANCLINI (2008).
[4] HALL (2004).
[5] BAUMAN (2001).
[6] GIDDENS (2002).
[7] LIPOVETSKY (2004).
[8] Paradigma, de acordo com Kuhn (1975, p.221-222), é algo compartilhado pelos membros de uma comunidade, ou seja, é o consenso de uma comunidade científica em relação a alguns conceitos que vão definir o que é válido para a comunidade.
[9] Na visão de Jameson (1997), uma importante característica da pós-modernidade é a fragmentação. Para ele, a era pós-moderna não pressupõe a universalidade dos discursos característica da era moderna. Ao contrário, não parece haver, na pós-modernidade, o pressuposto da existência de uma verdade absoluta, mas, sim o pressuposto de que existem verdades relativas. Assim sendo, na medida em que se pressupõe que não há uma verdade que justifique a universalização dos discursos, o que resta são discursos fragmentados e heterogêneos coexistindo em uma mesma época.
[10] Tomamos a leitura como prática social produzida discursivamente.
[11]CAVALLO & CHARTIER (1998, vol 1 – vol 2) mostram como algumas tecnologias mudaram a história da humanidade e, consequentemente, da leitura, como é o caso da escrita, da imprensa, o conjunto de tecnologias eletroeletrônicas como o rádio, televisão, computador. Hoje temos todas elas integradas ao computador, por meio da internet.
[12] Práticas discursivas tomadas no sentido foucaultiano, como sistemas que instauram o enunciado como acontecimento.
[13] Para Bauman haveria duas espécies de modernidades: a sólida (pesada) – referente ao que usualmente é chamado de modernidade, propriamente dita – e a líquida (leve) – referente ao que chamamos aqui de pós-modernidade. O termo “modernidade líquida” é cunhado por Bauman no livro que tem por título exatamente essa nomeação, publicado no Brasil em 2001.
[14] A qual, segundo Lévy (1996), possibilitou a configuração de um novo espaço: o ciberespaço.
[15] Com isso enveredamos de vez na era do “tempo real”, do “on-line”.
[16] A ideia do movimento é muito recorrente em Bauman, assim como em muitos outros autores que tratam da questão da pós-modernidade.
[17] Ver: BAUMAN (1999; 2001); GIDDENS (1991); HALL (2004).
[18] Mesmo que o global tenha dado maior visibilidade também ao local, entendemos juntamente com Hall que esse “‘localismo’ não é um mero resíduo do passado. É algo novo – a sombra que acompanha a globalização: o que é deixado de lado pelo fluxo panorâmico da globalização, mas retorna para perturbar e transtornar seus estabelecimentos culturais. É o exterior constitutivo da globalização” (2003, p. 61). Com base nessa afirmativa que pensamos que todos estamos envoltos pelo advento da globalização, indiferentemente dessa contextualização ser global ou local. E é nesse sentido, que o local e o global andam juntos, sendo hoje, um existência do outro.
[19] “Interpelação é o termo utilizado por Althusser (1971) para explicar a forma pela qual os sujeitos – ao se reconhecerem como tais: ‘sim, esse sou eu’ – são recrutados para ocupar certas posições-de-sujeito”. (WOODWARD, 2004, p.59)
[20] Conforme Santaella,embora sejam responsáveis pelo crescimento e multiplicação dos códigos e linguagens, meios continuam sendo meios. Deixar de ver isso e, ainda por cima, considerar que as mediações sociais das mídias em si [estendemos também para as novas TIC] é incorrer em uma ingenuidade e equívoco epistemológicos básicos, pois a mediação primeira não vem das mídias, mas dos signos, linguagem e pensamento, que elas veiculam”. (SANTAELLA, [1992] 2000, apud SANTAELLA, 2003, p.116-117)
[21] Hall argumenta que o sujeito fala sempre a partir de uma posição histórica e cultural específica. (Cf. Woodward, 2000, p.27)
[22] Para Woodward (2000, p.33) toda prática social é simbolicamente marcada. Entendemos a leitura como prática social, uma vez que a linguagem o é. Sendo assim, como dissemos outrora, estudando a linguagem (e, portanto, a leitura) estamos estudando a sociedade e a cultura das quais ela é parte constitutiva e constituinte.
[23] Conforme Coracini (2003a, p.113), se esse sujeito é internamente múltiplo, heterogêneo, clivado, não nos é possível falar de identidade como algo acabado, estável e fixo. Por isso, a identidade é ilusória e só existe como construção imaginária. Nós somente podemos captá-la por irrupções esporádicas no fio do discurso, quando o sujeito deixa, de forma inconsciente, resvalar a sua heterogeneidade.
 
[24] Comitê de Democratização da Informática do Paraná é uma organização não-governamental – que faz parte de uma rede presente em dezenove estados brasileiros e em oito países.
[25] É possível saber que se trata de uma janela de navegação não apenas pelo formato característico, mas pelo endereço eletrônico que apresenta na parte superior do browser: www.cdipr.org.br .
[26] Geralmente designados de hipertextos, no entanto, entendemos que nem todos os textos digitais são hipertextos. Exploraremos essa questão no tópico seguinte desta dissertação.
[27] Muitos podem não escrever, isto é, tornarem-se autores, nos espaços de fluxos, ou ambientes virtuais, mas fatalmente, tornar-se-ão leitores da textualidade aí disposta, uma vez que tal imperativo funciona como porta de acesso a esse espaço, mesmo que essa leitura seja apenas “intuitiva”.
[28] Lembrando que Orlandi (1992) chama a atenção para o fato de que o silêncio também produz sentido, também é significativo no dizer.
[29] Authier-Revuz, no livro, Palavras Incertas: as não-coincidências do dizer, explora com propriedade a constituição heterogênea da linguagem, todavia, no que tange ao universo da linguagem digital, tão fortemente atrelada à questão das novas TIC, deparamo-nos com mais uma forma de heterogeneidade: aquela que diz respeito à tradução dos dados (sejam eles letras, números, som, imagem, vídeo, etc.) inseridos no computador, para uma mesma linguagem, a codificação digital em bits, que é a linguagem processada pelo computador. E que, transcodificada, é devolvida a nós na sua forma original, o som como som, a imagem como imagem, a escrita como escrita, por exemplo.
[30] Usamos a expressão de Canclini, todavia, com certa ressalva, tendo em vista que nos posicionamos desde a abertura desta unidade a favor da não existência da possibilidade de exclusão total.
[31] O que Santaella (2003, p.73) irá chamar de economia global informacional, designada por ela como a mais recente expressão da mobilização capitalista da sociedade.
 
Fonte: CAMPOS, Magna; Lysardo-Dias, Dylia. A tecnologia como mediadora da subjetividade: o caso do sujeito-leitor. Revista Linguasagem, UFSCAR, 17 ed. jun. 2011. Disponível em: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao17/art_camposedias.php. Acesso em: 28 jul. 2011.