sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Mordaças e palmadas - Lya Luft

Lya Luft

Aqui não vai crítica a pessoa alguma: vão dúvidas e preocupações - com povo e governo ou governos. Democracia e liberdade. Conceitos difíceis, confusos. esquecidos e negligenciados. Leio, escuto, percebo aqui e ali algum projeto de amordaçamento da imprensa, por exemplo.

Logo que se manifesta, surgem protestos, e as garras se escondem de novo na manga. Mas a ideia volta mais adiante. e isso se repete. Vamos controlar mais, via estado. os meios de comunicação: jornais, televisões, revistas, rádios. Isso de veicular qualquer coisa. ou ter liberdade demais. não convém. O país ainda está imaturo. o povo, desinformado, vamos controlar isso.

Sim. o povo anda mal informado. O número de analfabetos é assustador, e mais uma vez, cansativamente quem sabe. repito: alfabetizado não é quem assina o nome, mas quem assina o nome em um documento que leu e compreendeu. Sua porcentagem neste país é um desastre. Investir em educação, maciçamente. em vez de pensar em amordaçar os meios de comunicação, poderia ser uma ideia magnífica.

Escolas boas, professores estimulados, acesso fácil a todos, bons curriculos, merenda farta, dia inteiro para os mais desvalidos. Ensino médio de boa qualidade, acessível a todos, mesma coisa quando a professores. Universidade ótima, e escolas técnicas superiores abundantes, acabar com o preconceito de qie temos de ser bacharéis.

Esse seria o verdadeiro gesto de liberdade democrática para o país e o povo, jamais controlar a manifestação livre de ideias, desejos, esperanças, necessidades e protestos. Nem querer nivelar por baixo nem limitar, como pensar em reduzir ou até proibir séries americanas nas TVs brasileiras: queremos o atraso, ser Cuba ou Venezuela. ou nos integrar ao mundo mais adiantado, incentivar a boa produção de programas de TV e de filmes brasileiros, em vez de cercear?

Outro tema, agora atualíssimo, é a interferência em assuntos tão pessoais quanto a educação dos filhos. A mim o tema "palmada" parece um pouco ridículo, num momento de eleições iminentes. quando precisamos estar sérios, lúcidos. focados no assunto "quem vai nos governar nos próximos quatro anos. como, com que ideias e meios". Crianças e jovens, filhos em geral, já são protegidos por leis suficientes. Se elas não forem respeitadas, e sua quebra não for punida. não vai adiantar nada inventar novidades. Vamos aplicar e vigiar o que já existe. E não acho que o "projeto palmada" funcione sem grande confusão. Primeiro problema, o do controle: quem vai denunciar pai ou mãe que derem palmada (e não pode nem aquela branda, carinhosa chamada de atenção por cima da gorda fralda): o vizinho intrometido, a vizinha invejosa, a babá em aviso prévio, a comadre neurótica, a sogra chata. O ex-cônjuge vingativo? Eu gostaria de saber, só para começar, quem vai lidar com a avalanche de denúncias loucas. injustas e irreais que vão atravancar delegacias, postos de polícia e semelhantes.

Violência as vezes se justifica, sim. como para controlar violência. segurar alucinados, prender bandidos, dominar violentos assassinos. Mas nem mesmo violência verbal deveria reinar nas famílias: um insulto pode doer bem mais do que um tapa. brigas entre os pais fazem mais mal do que uma palmadinha, acreditem. Então, o conceito de que violência em casa é negativa e tem de ser punida já existe. Basta aplicar as regras e leis. Mas a tal lei da palmada, me perdoem: parece-me irreal, inexequível, geradora de muita confusão e de indevidas intromissões no lugar que deveria ser o mais nosso. o mais pessoal. nosso refúgio. nosso reino, nosso santo dos santos: a casa, a família. o lar.

Mas como as coisas entre nós. e neste vasto mundo. andam mais para confusão e doideira do que para lucidez e serenidade. como estamos mais violentos, policialescos. alucinados, assustados e assustadores do que firmes, elegantes, sábios, pacíficos e ordenados, tudo pode ser esperado. tudo é possível, e vamos nos habituando a viver na estranheza, na esquisitice. protegendo-nos como podemos de atos, fatos e ideias bizarros.

Fonte: Artigo publicado na revista VEJA em 2/8/2010

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