Frederic Jameson analisa as formas de produção simbólica da vida social a fim de compreender seu próprio funcionamento interno
Que providências deve tomar um crítico marxista inserido no centro do capitalismo? A intervenção de Fredric Jameson estrutura uma resposta produtiva a essa pergunta e alicerça sua posição entre os intelectuais mais importantes de nossos dias. Primeiro grande pensador da era da globalização, alia uma surpreendente invenção teórica a um interesse voraz por diferentes assuntos e tradições nacionais. De fato pode-se dizer dele que nada cultural lhe é estranho. Em sua extensa obra – serão vinte livros com a publicação, este ano, da coletânea de ensaios Valences of the dialectics – coexistem a formulação de novas categorias para atualizar a vocação do marxismo de ser a filosofia do presente com estudos das formas de arte de nossos dias, indo da arquitetura pós-moderna à produção de vídeos, passando pelo cinema dos países periféricos, e, também, com estudos sobre a grande tradição realista e modernista e, ainda, com análises de época, por exemplo, sua caracterização dos anos 1960 como “a era da emissão de um excesso de crédito superestrutural”, que se traduz no sentido de liberdade e de possibilidade da realidade objetiva do momento, logo cerceado pela dureza de um sistema em expansão por todo o globo, que iria apresentar, com juros, a conta das determinações de base, ou, ainda, sua caracterização precisa dos parâmetros do presente no que é talvez seu livro mais influente, o Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio, complementada na sua apreciação cáustica do que nos podem oferecer os tempos neoliberais em A modernidade singular.
Essa variedade justifica que alguns dos estudiosos de sua obra – hoje são pelo menos uma dúzia de livros e mais de uma centena de artigos – proponham considerá-lo, como o faz Michael Denning, não apenas como mais um grande autor na nossa Era da Teoria, mas como um novo campo cultural. Na mesma linha, Ian Buchanan defende que, a fim de não sub-utilizar o potencial do seu legado, ele deve ser lido “dogmaticamente, como o fundador de um discurso (para usar a descrição de Michel Foucault das obras de Freud, Marx e Nietzsche) ou seja, alguém cujo pensamento nos chega em forma de um sistema em que podemos nos situar e utilizar para propósitos próprios”. Eu não discordo desses autores, mas acho que pode ser mais esclarecedor pensar a obra de Jameson como um exemplo da capacidade da tradição da crítica cultural materialista de produzir um pensador que possa retratar e transcender os limites da situação que o engendra. Nesse sentido, sua obra se constitui em um marco para quem se interesse por uma crítica cultural empenhada cuja proposta é compreender o funcionamento da vida social explorando o potencial cognitivo de suas formas de produção simbólica. Para esse tipo de crítica, a questão continua sendo a de entender para modificar, juntando a tarefa da filosofia, e hoje da teoria, de explicar o mundo com a cada vez mais urgente tarefa social de contribuir para mudá-lo.
Como bom crítico dialético, Jameson sabe que para constituir esse marco ele tem que dar conta do lugar e da hora histórica em que está situado. Nascido em 1934, formou-se em Literatura na Universidade de Yale em plena Guerra Fria, um momento particularmente hostil ao pensamento livre nos Estados Unidos. Como se sabe, um dos muitos efeitos perniciosos da perseguição sistemática a qualquer forma de dissidência que marca a consolidação dos Estados Unidos como poder hegemônico mundial foi o apagamento de uma florescente tradição cultural de esquerda e a criação de uma atmosfera intelectual avessa a qualquer tipo de crítica anti-sistêmica, descartada de imediato como anti-americana. Nessa situação, ele teve que criar as condições para construir um projeto que desse conta das questões impostas a um crítico conseqüente pelos tempos áridos do capitalismo globalizado.
O primeiro grande passo foi estabelecer as conexões entre esse projeto intelectual e o pensamento europeu que o tornava possível: sua tese de doutorado, publicada em 1961, aborda as formas do engajamento através de um estudo do fundamento ideológico do estilo de Sartre. Seu segundo livro, Marxismo e forma (1971), apresenta estudos iluminadores da grande tradição do que se convencionou chamar de Marxismo Ocidental, representada nas obras fundamentais de Georg Lukács, Theodor Adorno, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Ernst Bloch e do próprio Sartre. O projeto de Jameson vai dar continuidade às realizações da teoria crítica e atualizar seus resultados mais produtivos. Grande leitor de Hegel, sabe que o verdadeiro assunto não se esgota no seu resultado, mas na sua elaboração. Um dos objetivos do livro é trazer a boa nova da dialética para o centro irradiador da ideologia liberal, para um público leitor encharcado de positivismo, empirismo e de pragmatismo, onde a clareza é a regra que simplifica o raciocínio e apaga as conexões entre arte e sociedade, crítica e conhecimento, história e consciência. Na contramão da fragmentação vigente, ele vai recolocar aí os grandes temas da dialética: a questão da totalidade, a interação entre sujeito e objeto, a relação da parte com o todo, do concreto com o abstrato, do intrínseco com o extrínseco, do existencial e do histórico. Trata-se de retomar e avançar nas grandes frentes abertas pela tradição. Reaparecem em sua obra a fascinação de um Lukács pela periodização histórica e pela forma narrativa – para Jameson, narrar é o grande exemplo da dialética em funcionamento – a noção de Benjamin da arte como alegoria que deixa ler o que a história oficial oculta; o gosto de Marcuse pela crítica da sociedade da tecnologia e do consumo; assim como, para usar as palavras de Perry Anderson, “a fluência excepcional de um Sartre” para descrever o mundo degradado criado pela preponderância incontestada das mercadorias; e, ainda, o respeito de um Bloch, figura cuja influência vai ficando cada vez mais marcante, pelos sonhos e esperanças arraigados em objetos e obras de arte, que será trabalho da crítica desentranhar. De Adorno, sobre quem escreveu um livro de grande interesse, fica a marca da ambição de manter constante o trabalho de negar as limitações do que existe e pagar o preço de ousar levar o pensamento para além de si mesmo. Na esteira de Adorno, sabe que a representação da totalidade exige que se construa um idioma a contrapelo das tendências particularizantes do pensamento hegemônico segundo o qual cada acontecimento é único, desgarrado de determinações.
Este é o fundamento histórico e político do estilo de Jameson. Muito já se escreveu sobre a sintaxe retorcida de suas sentenças, que buscam desempenhar a tarefa difícil de aliar rigor estrutural, crítica imanente e prognóstico histórico. Para seu colega britânico Terry Eagleton, ele conseguiu forjar um modo de escrever único, que evita tanto a transparência anêmica do estilo anglo-saxão quanto as obscuridades muitas vezes intratáveis do estilo europeu, estruturando uma prosa a um só tempo densa e lúcida. Para Perry Anderson, autor do melhor livro sobre Jameson, sua escrita “eclodiu como uma série de fogos de artifício na noite sombria do pós-modernismo, transformando suas sombras e opacidades em um tableau revelador”. Penso que, seguindo a explicação do próprio Jameson, se trata aí de uma adequação estética de forma a um conteúdo que a demanda: como o pensamento dialético é de fato um pensamento sobre como se pensa, “um pensamento de segundo grau, que se debruça sobre um determinado objeto e ao mesmo tempo retém a percepção de suas próprias operações intelectuais”, é preciso trazer essa autoconsciência inscrita na própria prosa. Desse modo, a complexidade da escrita é um ato de intransigência frente à simplificação escondida nos ideais de clareza e fluência que são ensinados como normas nas escolas de Letras e nas redações de jornais. A verdade das relações sociais e sobre como a cultura lhes dá forma não está certamente na superfície da vida cotidiana em uma sociedade como a nossa onde a ocultação é essencial para o bom funcionamento do sistema. Se o capitalismo sempre buscou esconder o tanto de exploração e iniqüidade necessárias para a manutenção do mundo sob a égide da forma mercadoria, a ofuscação só se acentua na nossa era dita pós-industrial, que encobre a luta de classes sob a saturação da mídia, e a fragmentação do sujeito sob os prazeres serializados do consumo. Jameson contrapõe, à imediatez da apreensão plana das imagens, o esforço e o tempo necessários para a reflexão, para o desmonte do senso comum e para a possibilidade de se ir além do que é.
O leitor que se permite levar pelo ritmo desconcertante dos seus parágrafos pode ganhar, além do salutar exercício mental, uma nova perspectiva para pensar os principais itens na agenda de discussão intelectual do momento: quase todos eles são objeto da reflexão iluminadora de Jameson. De fato, sua carreira pode ser vista como uma sucessão de intervenções fulminantes nos debates mais candentes da época. O primeiro grande entrevero é com as concepções vigentes do que se convencionou chamar, em literatura, da crise da interpretação. A voga em 1981, ano da publicação de O inconsciente político, já era decididamente a que viria imperar até nossos dias, a da textualização da literatura: os textos seriam mais um objeto no abominável mundo novo da coisificação. A especificidade da literatura se esgotaria em ser um artefato verbal, com pouca ou nenhuma relação com o contexto sócio-histórico que a forma e informa. Essa concepção floresce de forma epidêmica na academia norte-americana onde a Nova Crítica, desde os fins dos anos 1950, ensina a todos a pensar o texto literário em si mesmo, serrando suas relações com a história e com a vida social. A partir dos anos 1970, a predominância da visão isolada do texto se sofistica: o pai da desconstrução, Jacques Derrida, deu em 1966 uma conferência na universidade Johns Hopkins em que denuncia o que ele chama de “sonho de decifrar a verdade” e os limites da razão dualista, marcando o começo da invasão pós-estruturalista. O objetivo da análise literária sob essa égide passou a ser desmontar as oposições binárias que construíam a racionalidade do texto literário. O objetivo principal da crítica seria problematizar o uso de linguagem no texto e afirmar a impossibilidade de qualquer afirmativa ou tomada de posição. Todo o movimento pode ser resumido no título de um influente ensaio da crítica nova-iorquina Susan Sontag: “Contra a interpretação”.
O livro de Jameson vem inverter essa direção. Em um ambiente onde estão todos falando que não se pode decidir sobre o sentido, ele coloca de forma convincente que não há nada que não seja histórico e social, e, portanto, inteligível para os que buscam essas determinações. A própria discussão sobre a possibilidade da interpretação é sintoma e reforço do processo acelerado de alienação da vida social sob o capitalismo tardio: quanto mais suas estruturas se tornam abstratas e disfarçam a realidade do trabalho e da exploração mais se fala na impossibilidade de se entender esse mundo; quanto mais se dá a separação entre o indivíduo isolado e a sociedade mais este se percebe como uma mera engrenagem no processo social e menos como alguém que pode interferir nesse processo. Os que deveriam pensar esse momento se enredam em infinitas discussões sobre usos de linguagem e questões de método. Em tempos de esmaecimento do sentido do desenvolvimento histórico pelo eterno presente do consumo, Jameson mostra que a história é o que “fere, o que recusa o desejo, o que coloca limites inexoráveis à prática individual e à coletiva”. Por mais que os críticos se esforcem por esquecê-la ou reprimi-la, transformando-a, por exemplo, em apenas mais um texto, ou decretando, como Fukuyama, seu fim, podemos ter certeza de que suas necessidades alienantes não vão se esquecer de nós.
A própria narrativa, longe de ser um jogo aleatório de significantes, é um ato social simbólico que busca resolver de forma imaginária, mas não por isso menos significativa, os conflitos reais da sociedade. A história do romance realista, traçada no livro através do exame da obra de Balzac, George Gissing e Joseph Conrad, é também a história da formação da subjetividade burguesa. Ele analisa a consciência relativamente unificada, autoconfiante e centrada das primeiras obras de Balzac e mostra como esta consciência se transforma no princípio estrutural do romance, o gênero literário que vai articular e moldar essa subjetividade. A obra de Gissing é vista como o momento do desencanto com a instrumentalização e fragmentação dessa sociedade. A crise atinge novo ponto de intensidade no século 20, com a expansão do imperialismo e a aceleração da mercantilização; o romance se refugia em uma intensificação do eu, marca do modernismo, que funciona como uma compensação utópica pelo declínio do sujeito na sociedade real. O movimento da leitura política advogada por Jameson restaura a riqueza de significados da produção estética, que é a um só tempo um complexo de aspirações e desejos e, também, um registro das limitações da história e da ideologia. Interpretar um texto literário equivale a liberar seu inconsciente político.
A próxima grande batalha é sobre o caráter do presente. Derrubado o muro de Berlim e chegado ao fim o ciclo histórico dos dois mundos, o lado vencedor começa a discutir o caráter da nova sociedade. O foco do debate intelectual se desloca das questões econômicas – afinal, da ótica dos intelectuais orgânicos do sistema parece indiscutível que capitalismo é o estado natural da humanidade – e das questões políticas – de novo, a democracia a serviço do mercado parece reinar suprema. A atenção dos ideólogos se volta então para a cultura, esfera da criação de significados e valores que ordenam um modo de vida que é preciso adequar às necessidades do consumo. Em um mundo globalizado, as diferentes culturas operam ainda como o resíduo de uma certa heterogeneidade que é preciso padronizar e colocar a serviço do mercado. Enquanto os analistas de conjuntura alinhados proclamam, como o especialista do Pentágono e professor de Harvard, Samuel Huntington, que a questão central do século 21 será o choque de civilizações, a ser presumivelmente evitado pela supremacia de uma só civilização erigida como padrão e polícia do mundo, na esfera das ciências humanas todos se comprazem em discutir a nova versão da velha ordem mundial como se ela se reduzisse a um problema de estilo: todos nos dedicamos a discutir a existência ou não do pós-moderno e a celebrar as oportunidades abertas em um mundo onde não haveria mais centro – exceto o formado pelo complexo econômico-militar, claro, mas isso poucos diziam.
A intervenção de Jameson apresenta um ponto de vista que reordena o debate. Ele mostra que longe de ser um ponto de chegada único e inevitável, o capitalismo contemporâneo corresponde a mais um estágio do velho sistema. Ernest Mandel já havia dividido no tempo essas mutações: houve três momentos fundamentais do capitalismo, cada um marcando uma expansão dialética em relação ao anterior. Após a Revolução Industrial do século 18, tivemos um primeiro estágio, o do mercado, marcado pela tecnologia dos motores a vapor; depois, um monopolista ou imperialista, apoiado na tecnologia dos motores elétricos ou de combustão e , em meados do século 20, o estágio multinacional, marcado pela produção de motores eletrônicos ou nucleares e hoje oficialmente batizado de estágio da globalização. O passo à frente que dá Jameson é demonstrar que a cada estágio correspondeu um estilo cultural – o realismo da era do capitalismo de mercado sendo sucedido pelo modernismo da fase metropolitana e pelo pós-modernismo de nossos dias. Mais importante do que essa periodização de estilos é mostrar que a lógica que azeita o funcionamento do capital nessa sua fase de expansão máxima é cultural. Isso quer dizer que cada vez mais o sistema, agora planetário, requer uma sociedade de imagens voltada para o consumo para “resolver” as contradições que continua criando. Se antes a cultura podia até ser vista como o espaço possível de contradição, hoje ela funciona de forma simbiótica com a economia: a produção de mercadorias serve a estilos de vida que são criações da cultura e até mesmo a alta especulação financeira se apóia em argumentos culturais, como o da “confiança” que se pode ter em certas culturas nacionais ou as mudanças de “humor” que derrubam índices e arrasam economias. A produção cultural também se tornou econômica, orientada para a produção de mercadorias: basta pensar nos investimentos que funcionam como garantias do interesse de filmes de Hollywood.
Nessa conjuntura, a crítica cultural pode ser um eficiente instrumento de descrição do funcionamento da sociedade, e é justamente esse um dos movimentos centrais do projeto de Jameson. Lançando mão de categorias como “mapeamento cognitivo”, ele interroga a produção artística contemporânea em busca de indícios para a tarefa difícil de mapear as pressões e limites impostos pela aceleração constante de um sistema que atinge tal extensão que excede a capacidade do indivíduo de se localizar e, principalmente, de tomar distância do que é, dificultando – e muito – a capacidade crítica. É nesse sentido que a obra de arte, cujo material é a experiência do vivido, tem parte com a formação da consciência. Mais do que isso, e retomando Bloch, ele insiste que a forma artística acaba sempre por buscar figurar o desejo de uma experiência menos espúria, uma consciência antecipatória que busca expressar uma concepção diferente da que a ordem atual reprime.
Esse trabalho do desentranhamento da esperança em um mundo marcado pela reiteração constante da inevitabilidade do que é constitui uma das características da originalidade de Jameson. Em seu livro Marcas do visível ele demonstra como, mesmo nas produções mais comerciais do cinema, é possível divisar uma dialética entre ideologia e utopia, entre o existente e o aspirado. Na medida em que a falsa consciência repete a lição da inevitabilidade do modelo de vida em cena no momento, a tarefa de romper com a inexorabilidade de se esperar apenas mais do mesmo se torna mais urgente. Esse é o sentido de seu livro Archaeologies of the future, publicado em 2005. Ostensivamente um estudo das formas de experimentar futuros alternativos – os livros na tradição do Utopia, de Thomas Morus e seus correlatos contemporâneos, as obras de ficção científica, o livro é também um chamado à retomada da função utópica da crítica cultural. E antes que algum dos nossos camaradas mais empedernidos se escandalize com o aparente idealismo de tal proposta, vale lembrar que para Jameson trata-se de pensar a Utopia como uma estratégia política de ruptura com as inevitabilidades do presente que ameaçam colonizar também o futuro. “A persistência de formas utópicas” é a resposta “à convicção ideológica universal de que não há nenhuma alternativa possível”. Mas essas formas o afirmam forçando-nos a pensar na própria quebra, e não nos oferecendo uma representação mais tradicional de como seriam as coisas depois dessa quebra.
Fazer da crítica cultural uma das formas da ruptura necessária com a produção de infelicidade que caracteriza a paisagem devastada da mesmice globalizada é o grande plano que nos lega esse intelectual ímpar. Claro que ele sabe, como insiste nos ensaios sobre a globalização coligidos no Brasil em A cultura do dinheiro, que ainda não temos notícia de nenhuma consciência coletiva capaz de se opor à hegemonia do capital mundializado. Mas isso, insistiria Jameson, é apenas mais uma razão para mantermos aberta uma brecha onde o futuro possa chegar a lutar para existir.
Maria Elisa Cevasco é professora do Departamento de Letras Modernas da USP.