segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A vida, o tempo e o nosso tempo


 
 Henri Bergson (1859-1941): o tempo compreendido como o objeto fundamental da metafísica






Como poderíamos apontar, na filosofia de Henri Bergson (1859-1941), o aspecto que justifica a retomada contemporânea de seu pensamento? Sabemos que, desde o fim da década de 1990, o meio acadêmico francês deu ensejo a um movimento de recuperação do filósofo, cuja obra conheceu um ostracismo de difícil explicação ao longo dos anos 1970 e 1980. Em todo caso, é evidente, nos últimos 15 anos, o ressurgimento de estudos notáveis sobre o filósofo, incluindo novas hipóteses de leitura sistemática de sua obra, que derivam em interpretações originais e profundas sobre o seu sentido total, assim como o estabelecimento de confrontações frutíferas com a tradição fenomenológica. Também cabe mencionar o trabalho minucioso e extremamente relevante de retorno às fontes científicas da reflexão bergsoniana, trazendo como consequência intrínseca a recuperação da sua importância para o debate científico contemporâneo.
Tal movimento, conforme as direções dadas ao saber e à cultura num mundo globalizado, é notoriamente marcado pela internacionalização. Se as teses e publicações na França dão o tom das releituras e mesmo da redescoberta da filosofia bergsoniana, elas o fazem em contato permanente com o movimento de expansão de pesquisas, artigos e eventos que envolve países tão distantes como o Brasil e o Japão, incluindo inserções na Coreia do Sul, na Inglaterra, na Bélgica e na Itália. No Brasil, a renovação dos estudos bergsonianos ocorre e ganha força depois do trabalho irretocável de dois filósofos que, solitários, responderam pela formação dos estudiosos durante aproximadamente 25 anos: Bento Prado Júnior e Franklin Leopoldo e Silva.
Levando em consideração todo esse movimento, e analisando, sobretudo, o teor da maior parte das publicações recentes, podemos arriscar uma resposta à questão colocada no início. O ponto de convergência entre os mais diversos estudos reside na importância que o pensamento da duração sempre exerceu, ainda que não se lhe reconhecesse o valor, sobre o século 20 e as diversas filosofias que nele se praticaram.
Nesse âmbito, articulam-se as duas vertentes de seu projeto filosófico: a vertente negativa, concretizada numa potente crítica da tradição filosófica e que aponta a dualidade (instituída, sobretudo, com o cartesianismo) entre sujeito e objeto, ou, antes, entre consciência e natureza, como um dos principais problemas a resolver. Ou seja, trata-se da dimensão de sua reflexão que, ao constatar os limites do pensamento clássico e sua onipresença no campo da ciência, responde pela intuição original do filósofo – o tempo real escapa às matemáticas. A segunda vertente, de caráter propositivo, impõe uma nova definição de objeto e de método ao fazer filosófico: se a tradição racionalista seguiu os hábitos da inteligência e da linguagem, o tournant necessário a uma filosofia que possa se reaproximar da vida e da experiência humanas exige ultrapassar a distância instituída pela ação, origem da forma espacial, e desse modo desvelar o real sob o véu das ideias para reencontrar o contato imediato com o tempo, a temporalidade ou a duração.


Meditação sobre o tempo
A filosofia de Bergson é, portanto, uma meditação sobre o tempo, a verdadeira natureza do real que é durée: continuidade e diferença articuladas num meio que é o solo comum da consciência e da vida. O filósofo francês virou do avesso a relação entre multiplicidade e unidade, mostrando, na multiplicidade virtual de momentos heterogêneos, a unidade da duração. O trajeto de Bergson consistiu em descobrir essa unidade múltipla na interioridade subjetiva e ampliá-la para a materialidade sobre a qual recortamos objetos e fixamos campos de ação. Em seguida, conseguiu encontrar o alcance propriamente biológico dessa unidade, expresso no movimento de transformação das espécies vivas para, finalmente, alçá-la à origem do movimento cosmológico, por meio da famosa imagem do “elã vital”. Renovou a metafísica com análises dissociativas e em termos de tendências, em vez de balizar seu pensamento pelas “coisas”, a objetividade determinada das ciências e do racionalismo, inclusive e principalmente o kantiano. Sabemos que, por sua remodelação da teoria das multiplicidades, exerceu uma enorme influência sobre Deleuze e, por sua renovação ontológica que tomou o dualismo como problema filosófico privilegiado – a ele dedicando uma obra capital, Matéria e Memória –, antecipou passos e problemas próprios à fenomenologia francesa. Toda a sua reflexão se constrói, em certa medida, em torno da contraposição entre noções complementares, entre as diferenças convergentes, o que levou Deleuze a apontar, em sua obra canônica Bergsonismo, o “gosto pelos dualismos” como uma das chaves para a compreensão de sua metafísica.
Na obra A Evolução Criadora, Bergson nos apresenta sua cosmologia fundada na hipótese do elã vital, cuja efetividade cria os entes do mundo pela realização de tendências que, originariamente interpenetradas, se separam por seu próprio querer ser. Esse é o segredo do tempo, sua multiplicidade de tendências que serão confrontadas com seus inversos, tal como é o caso da vida que quer avançar encontrando a matéria que quer se deter. A duração será o “conceito” capaz de explicar como matéria e vida podem ambas surgir de um mesmo movimento, o passado que invade o futuro através do presente, o movimento temporal de superação e conservação de si. O “milagre filosófico” de Bergson consistiu, sobretudo, em redescrever o tempo ou a experiência temporal partindo de estudos profundos e detalhados sobre os processos conscientes – entre os quais os diversos sentidos da noção de memória ocupam lugar de honra. Configurou, assim, um novo espiritualismo, chegando a uma renovação da filosofia da natureza que atribui ao homem, como bem aponta Gerard Lebrun, participação na e superação da vida animal. E o fez tomando o tempo como objeto real da metafísica, antecipando muito do que se fez posteriormente.
Voltando à importância de Bergson para o nosso tempo, poderíamos assim sintetizar sua contribuição: a de ter realizado uma filosofia que parte de uma intuição do tempo e se desdobra a partir de si mesma em filosofia da consciência e da vida. Numa obra recente, Frédéric Worms (ver entrevista na página xxx) procura organizar a reflexão filosófica do século 20 por meio da noção de momentos: o momento do espírito, o da existência, o da estrutura, o do vital. Aceitando essa leitura, apesar do peso um tanto excessivo que ela dá à ruptura entre tais momentos (pois se definem pela articulação em torno de problemas comuns), constatamos com surpresa que a filosofia bergsoniana é marca essencial do primeiro e do último. Dito de outro modo, Bergson nunca esteve tão atual.

Fonte: Revista Cult on-line. Edição 140. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/a-vida-o-tempo-e-o-nosso-tempo/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Dê sua opinião aqui