O documentário de Carla Gallo O aborto dos outros é o enunciado direto da dissimulação com que se trata a questão do aborto no Brasil atual
Marcia Tiburi
Há motivos distintos para os pronunciamentos sobre a questão do aborto nos dias de hoje. Motivos formulados como opiniões que, atenciosamente lidos, se mostram acobertadores do que realmente se visa com a proibição legal dessa prática tão familiar. Tais motivos devem ser analisados na intenção de colocar a questão no seu lugar devido, a saber, que o aborto é um problema das mulheres e que homens e instituições, para os quais o sexismo – a determinação da diferença sexual em que a mulher é vista como o “sexo” em si mesmo – é um método de controle, buscam o domínio do discurso sobre o aborto. Não poderia ser diferente, já que o aborto, do modo como é tratado no Brasil atual, apenas faz ver o estatuto do poder na mão – e mais precisamente na ordem do discurso – dos homens contra as mulheres. Nesse sentido, cabe também levar em conta que há, para além da proibição da prática, certa evitação do ato de teorizar em torno do aborto por parte das mulheres. Homens falam sobre o aborto, mulheres – com raras exceções – parecem não se sentir confortáveis em defender a própria causa. Mas é claro que não se trata apenas disso. Deixar que as mulheres decidam não é uma prática desejável em um sistema patriarcal, e é preciso começar impedindo que falem.
A propósito, o patriarcado é o lugar em que mulheres são submetidas pelo discurso. Não deve, portanto, ser entendido apenas como um modelo universal da racionalidade, da ética e da estética que dele decorrem organizando-se como ideologia, mas como a prática cotidiana dessa racionalidade que instrumentaliza mulheres. Ora, o patriarcado não é apenas metafísico, mas deve ser visto em seu fundamento ético-político, que se define pela ação contra as mulheres. Assim é que ele se constitui como o nome próprio da violência que costura um pensamento e uma prática contra mulheres da família à publicidade, da maternidade à pornografia.
Dizer contra, neste caso, é definir rigorosamente que as mulheres que ainda podem ser subjugadas pela ilegalidade do aborto são as social e economicamente desfavorecidas. Aquelas que permanecem sob comando biopolítico, sem supor que possam ser senhoras de seus corpos. Sem interpretações próprias sobre o que seja seu corpo, sua vida própria, mulheres pobres são reduzidas à condição de fêmeas procriadoras para logo depois serem rebaixadas, caso pratiquem o aborto, à condição de meras rés por terem ido contra a ordem. No senso comum brasileiro, vige o discurso de que a realização das mulheres está na maternidade e na feminilidade. Quem não obedecer a esta ordem do discurso poderá ser punida cruelmente.
Que a sociedade se torne mais democrática quer dizer que o patriarcado ceda diante da escolha das mulheres sobre seu próprio corpo. E essa escolha se afirma em um discurso como reação contra a ordem patriarcal sexista que, até os dias de hoje, é mal quisto em várias instâncias deste Brasil subjugado política e ideologicamente ao patriarcalismo.
Duas formas de silêncio
Mulheres, as verdadeiras implicadas na questão do aborto, raramente se pronunciam sobre ele. Há pelo menos duas formas de silêncio em jogo nesta questão. Em primeiro lugar, o silêncio derivado do comodismo e da alienação. Um silêncio cultural que define o poder da fala como algo masculino e, por contraste, “antifeminino”. Mesmo hoje em dia, muitas mulheres caem na armadilha essencialista, aquela que defende que mulheres não devem falar demais para evitar a tagarelice de que são acusadas desde a tradição filosófico-literária. No discurso essencialista, tem-se que “a mulher” é uma essência não falante. Desconsidera-se a formação cultural, histórica e social que constitui o gênero. Desconsidera-se o controle discursivo que está por trás de toda definição. Assim é que uma mulher deve calar, como se a fala articulada, que expõe ideias, fosse contra a natureza das mulheres, e não uma construção jurídico-cultural.
Esse silêncio é alienado, ele é produzido. Sua consequência é o fato histórico de que as mulheres, como “classe” ou grupo, não construíram teorias, não foram autorizadas, nem se autorizaram, a ser teóricas, cientistas ou políticas, ou seja, seres que dominam o funcionamento do discurso e podem exercer poder a partir dele, seja no campo do conhecimento, seja no campo da política profissional.
Mas há outro silêncio. Aquele que é praticado sem alienação por mulheres ideologicamente livres do patriarcado. Moralmente descomprometidas, ou financeiramente livres, não precisam responder às suas imposições. Praticam abortos conforme necessidades pessoais/corporais sem que ninguém ou nenhuma estatística precise sabê-lo. Não dependem do sistema público de saúde, não precisam se confessar ao padre, muitas vezes nem mesmo têm uma vida de casal com um homem ao qual devam prestar satisfação sobre seus atos. Quem são, o que desejam, como e onde o fazem é algo que permanece sob o véu da clandestinidade, que, neste caso, não é mais do que o fato da realidade. Clandestina é toda prática possível que mostra a insuficiência da lei e as contradições da moral.
Kafka, no conto “O silêncio das sereias”, afirmou que o silêncio das sereias é uma arma mais terrível que seu canto. Talvez alguém tenha escapado de seu canto, mas certamente ninguém escapou de seu silêncio, diz. Tal silêncio é a liberdade das mulheres insuportável ao patriarcado. É também sua arma. Infelizmente, no entanto, como arma ele não está ao alcance de mulheres desfavorecidas cultural e economicamente. O documentário de Carla Gallo mostra mulheres que são vítimas do discurso e do sistema quanto à impraticabilidade do aborto, mulheres que sofrem sob o jugo do patriarcado como se fossem meros animais que desobedeceram aos seus senhores.
Habeas corpus
O documentário O aborto dos outros é, nesse sentido, a exposição de uma reivindicação real do direito sobre o próprio corpo. Ele faz pensar que a questão do aborto no Brasil deve ser tratada segundo o direito do habeas corpus. Válido para aqueles que podem pagar por um advogado, o direito de habeas corpus deveria ser elevado a princípio mais que jurídico quando se trata da relação entre mulheres e seu corpo. O habeas corpus deveria ser tomado culturalmente, tornando-se uma verdadeira ética no combate à apropriação que o patriarcado exerce sobre o corpo das mulheres. O corpo das mulheres deve ser devolvido às próprias mulheres. Ou se perdeu no tempo ou nunca existiu o consentimento para que homens – a sociedade como um todo? – comandassem corpos de mulheres particulares, seu desejo de ser ou não ser mães.
A discussão sobre a abstrata questão da vida do embrião presente no corpo de uma mulher que não deseja desenvolver um feto não passa de elemento acobertador do controle biopolítico sobre corpos de mulheres. Do mesmo modo, não podemos mais nos ocupar da discussão que corre no senso comum e que divide a população entre ser a favor ou contra o aborto, quando na verdade se trata, no Brasil de hoje, de ser a favor da legalização do aborto ou contra a legalização do aborto. A questão da legalização é jurídica e, como tal, problema de poder, de saber quem comanda, quem decide, quem detém a verdade a seu próprio favor.
Somente a luta das próprias mulheres poderá mudar esse estado da questão. Enquanto isso, alguns homens mais lúcidos porque livres do discurso patriarcal, e percebendo que o tema não lhes diz respeito, associam-se às mulheres na luta por uma sociedade mais justa.
Mas somente as mulheres poderão buscar a justiça para si mesmas e para aquelas que, como elas, sofrem na coleira do patriarcado.
Fonte: Revista Cult on-line. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/filosofia-marcia-tiburi-4/
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