Marcia Tiburi discute questões poéticas e políticas sobre a “piada” em 140 toques
Marcia Tiburi
O Twitter é mais do que a marca de uma ferramenta atualíssima da era digital, é mais do que o microblog em que milhões de pessoas se divertem, é mais do que uma rede social em que informações são partilhadas. Ele é também a expressão estrangeira que migra da vida digital para a vida não digital (como deletar, start e e-mail) e que, como palavra-brinquedo, é usado para enfeitar ou facilitar a fala quando se trata de não despender muito esforço de expressão. Palavrinhas substitutivas, tão bem-vindas como estrangeirismos, sejam eles turistas ou exilados em nossa pátria, obrigam a pensar uma economia política da língua, ou seja, a questão da produção da linguagem, do valor que damos ao que dizemos, e do poder objetivo do discurso no tempo da expressão colonizada.
Proponho, nesta linha, traduzir o texto do Twitter, feito linguístico de 140 caracteres, pela palavra “piada”. Se é correto traduzir Twitter por “piador”, e se é possível dizer que, cada vez que um pássaro pia, temos dele uma “piada”, eis que se mostra o conceito-imagem claro do Twitter: ele é o espaço ideal do dito engraçado ou espirituoso. É esse dito que vale como graça, como palavra final, ou como grande iluminação que faz sucesso entre os usuários da plataforma. Piada é também o chiste. Chiste, por sua vez, é palavra que, assim como Twitter, tem origem onomatopeica. Piada, no entanto, também pode ser o estertor sem sentido, o chiado no corpo dos animais que anuncia doença ou morte. Mas até aí nada demais, pois uma piada, para sê-lo, não precisa necessariamente ter graça. A questão, no entanto, ainda é outra.
O Twitter radicaliza a natureza babélica da língua, o que nela é balbuciante e inarticulado. O uso de onomatopeias e abreviações nos textos de seus usuários é prova da experiência pré-articulada com a linguagem. Se a fala articulada é o cerne de toda relação e o que lhe dá base política, não fica difícil imaginar que o Twitter privilegia algo como uma antipolítica. Responder hoje à pergunta “o que está acontecendo?” não diz respeito ao que penso, nem ao modo como interpreto o mundo, mas deve reduzir-se ao que eu mesmo experimento no aqui e agora dos fatos. A ação é reduzida à narrativa protocolada em 140 caracteres. É, portanto, transformada em slogan.
No entanto, posso dizer que um slogan é política? Apenas naquele sentido afirmado por Antonin Artaud de que a propaganda é a prostituição da ação. Política vendida, ou prostituída seja a que preço for, eis o que temos ali como potência protocolada. O Twitter mostra assim sua alma publicitária diante da qual o diálogo como forma básica da relação verdadeiramente política é impossível.
Um cofrinho na economia política da fala
A tecnologia tem como efeito existencial a amputação do tempo de nossa experiência. Em nossa cultura digital, a velocidade é proporcional ao encurtamento do tempo que era experimentado antes nas trocas orais. A humana necessidade de conversação não é nada diante da administração discursiva da qual fazemos parte. O tempo da oralidade é justamente o que, podendo ser cortado sob a alegação de improdutividade, não fará falta na economia política da fala. Ao reduzir a potência da narrativa a 140 toques (considerando espaços entre palavras), o que o Twitter providencia é a imersão em um suposto tempo presente.
A restritividade da linguagem devém da experiência com o tempo, esse deus morto a pauladas em nossos dias. No Twitter a restrição é protocolarmente administrada por sua própria reprodutividade em um toque final que, ao mesmo tempo que mudo, é também o mais falante: “send”. Esse toque de número 141 não é computado pelo sistema, ele representa seu lucro, a prova de que é o sistema quem ri por último. Ponto final na piada pronta a que é reduzida a liberdade de expressão, ao mesmo tempo incompreensível para usuários ingênuos.
Nesse contexto, podemos falar do caráter de avareza do Twitter. Ele é contenção da expressão e da comunicação, cujo efeito é a histeria ansiosa que surge como escape pela expectativa dos sujeitos do Twitter, os twitteiros, pelo número de followers, retwitters, lists. Na lógica do lucro reduzido à linguagem, tudo é contado como num cofrinho em que cada letra-moedinha é guardada como um ponto no desejo de reconhecimento que sustenta as comunidades da internet. Economizar palavras é o jeito de inscrever-se na ordem simbólica desta comunidade espectral em que dizeres não valem nada no grande varal pan-óptico das frases feitas. O preço da entrada em espaço tão exíguo é pago com a expressão extirpada sob a alegação da síntese partilhada. O troco é devolvido em histeria por mais “seguidores”, discípulos do esvaziamento do vivido diante do modo de expressá-lo.
O Twitter é a forma ideal do nexo entre capital e discurso e, na banalidade do cotidiano, moedinha acessível para vastos grupos que já dominam aparelhos tecnológicos na efetivação de uma era democrática digital. Discurso é, por sua vez, a forma própria do poder que, desde que temos notícia, define tanto formas de governo quanto as mais micrológicas relações humanas. A base do poder discursivo é biopolítica, pois o poder do discurso vem de uma determinada articulação da voz que, como corpo que é sob a aparência de espírito, penetra outros corpos indo reverberar neles como verdade espiritual. O que ouço é sempre incorporado e transformado na alquimia oculta deste espaço existencial chamado corpo. Corpo, no entanto, é aquilo que se perde ou se joga fora nestes tempos digitais em que a ponta dos dedos projeta o mundo. Para os mais otimistas, contudo, a ponta dos dedos pode “cutucar” o sistema com frases perturbadoras.
Será possível escrever poesia depois do Twitter?
O Twitter representa o uso constrangido da linguagem elevado a regra. É a lírica da “piada”. Pode soar divertido para quem não se importa com o parnasianismo do padrão, para quem sente prazer, por outro lado, com o romantismo dos fragmentos, mas pode parecer, para quem pensa na potência revolucionária da linguagem, um mero brete. Cheirando a regras de versificação mesmo que faltem os versos, a estrutura fixa em 140 caracteres sugere um formalismo de metrificação rigorosa. Passar à percepção do caráter sacro da forma não é exagero diante da interdição de um “toque a mais” com o qual não é possível acionar o mágico “send” que permite a visualização das mensagens. Impede-se, assim, a desmedida, a errância que a poesia sempre potencializou como terra de palmeiras onde canta o sabiá e que a internet como campo – e como lugar de exílio em relação à vida – de exercício político veio substituir.
O Twitter parece, como estrutura formal, oferecer o veneno-remédio para o exercício da expressão: limitando-a, ele acaba por permiti-la, mas permitindo-a conclui por impedi-la. Enovela, assim, a sua ação num paradoxo. Desse modo, o Twitter mostra poesia estranha, como uma espécie de lírica do banal, ou a antilírica totalmente desejada pelos “seguidores”. Os pássaros que gorjeiam no Twitter não têm a mesma chance em nenhum outro lugar da internet. O Twitter é, assim, mais que o tempo-espaço da banalidade do poético, a própria
poética da banalidade. Lírica do banal, ele promete a expressão de uma subjetividade apagada pela forma. Haverá ali a esperança de que um dia, para além do espectro do grupo, estejamos finalmente juntos? Mas quem pensa que líricos do vazio querem encontro se engana. A prática que sustenta o Twitter é a garantia da avareza do dizer como um prazer, característica básica de uma cultura cujo desejo de voz e, portanto, de poder foi colonizado.
poética da banalidade. Lírica do banal, ele promete a expressão de uma subjetividade apagada pela forma. Haverá ali a esperança de que um dia, para além do espectro do grupo, estejamos finalmente juntos? Mas quem pensa que líricos do vazio querem encontro se engana. A prática que sustenta o Twitter é a garantia da avareza do dizer como um prazer, característica básica de uma cultura cujo desejo de voz e, portanto, de poder foi colonizado.
O cinismo é inevitável na noção de política que surge nesta rede de relações: não partilhamos grandes direitos, mas pelo menos temos alguma coisa em comum: 140 toques. Twitteiros, somos todos Severinos. A poesia como metáfora da esperança de uma vida boa e justa não cabe no Twitter, “cova medida”, ao mesmo tempo que é a “parte que querias ver dividida”. Alerta sobre o espaço que cabe a cada um no infinito latifúndio da internet.
Fonte: Revista Cult on-line. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/06/sobre-twitter-e-severinos/
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