quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sobre Twitter e Severinos - Márcia Tiburi

Marcia Tiburi discute questões poéticas e políticas sobre a “piada” em 140 toques


Marcia Tiburi
O Twitter é mais do que a marca de uma ferramenta atualíssima da era digital, é mais do que o microblog em que milhões de pessoas se divertem, é mais do que uma rede social em que informações são partilhadas. Ele é também a expressão estrangeira que migra da vida digital para a vida não digital (como deletar, start e e-mail) e que, como palavra-brinquedo, é usado para enfeitar ou facilitar a fala quando se trata de não despender muito esforço de expressão. Palavrinhas substitutivas, tão bem-vindas como estrangeirismos, sejam eles turistas ou exilados em nossa pátria, obrigam a pensar uma economia política da língua, ou seja, a questão da produção da linguagem, do valor que damos ao que dizemos, e do poder objetivo do discurso no tempo da expressão colonizada.
Proponho, nesta linha, traduzir o texto do Twitter, feito linguístico de 140 caracteres, pela palavra “piada”. Se é correto traduzir Twitter por “piador”, e se é possível dizer que, cada vez que um pássaro pia, temos dele uma “piada”, eis que se mostra o conceito-imagem claro do Twitter: ele é o espaço ideal do dito engraçado ou espirituoso. É esse dito que vale como graça, como palavra final, ou como grande iluminação que faz sucesso entre os usuários da plataforma. Piada é também o chiste. Chiste, por sua vez, é palavra que, assim como Twitter, tem origem onomatopeica. Piada, no entanto, também pode ser o estertor sem sentido, o chiado no corpo dos animais que anuncia doença ou morte. Mas até aí nada demais, pois uma piada, para sê-lo, não precisa necessariamente ter graça. A questão, no entanto, ainda é outra.
O Twitter radicaliza a natureza babélica da língua, o que nela é balbuciante e inarticulado. O uso de onomatopeias e abreviações nos textos de seus usuários é prova da experiência pré-articulada com a linguagem. Se a fala articulada é o cerne de toda relação e o que lhe dá base política, não fica difícil imaginar que o Twitter privilegia algo como uma antipolítica. Responder hoje à pergunta “o que está acontecendo?” não diz respeito ao que penso, nem ao modo como interpreto o mundo, mas deve reduzir-se ao que eu mesmo experimento no aqui e agora dos fatos. A ação é reduzida à narrativa protocolada em 140 caracteres. É, portanto, transformada em slogan.
No entanto, posso dizer que um slogan é política? Apenas naquele sentido afirmado por Antonin Artaud de que a propaganda é a prostituição da ação. Política vendida, ou prostituída seja a que preço for, eis o que temos ali como potência protocolada. O Twitter mostra assim sua alma publicitária diante da qual o diálogo como forma básica da relação verdadeiramente política é impossível.

Um cofrinho na economia política da fala
A tecnologia tem como efeito existencial a amputação do tempo de nossa experiência. Em nossa cultura digital, a velocidade é proporcional ao encurtamento do tempo que era experimentado antes nas trocas orais. A humana necessidade de conversação não é nada diante da administração discursiva da qual fazemos parte. O tempo da oralidade é justamente o que, podendo ser cortado sob a alegação de improdutividade, não fará falta na economia política da fala. Ao reduzir a potência da narrativa a 140 toques (considerando espaços entre palavras), o que o Twitter providencia é a imersão em um suposto tempo presente.
A restritividade da linguagem devém da experiência com o tempo, esse deus morto a pauladas em nossos dias. No Twitter a restrição é protocolarmente administrada por sua própria reprodutividade em um toque final que, ao mesmo tempo que mudo, é também o mais falante: “send”. Esse toque de número 141 não é computado pelo sistema, ele representa seu lucro, a prova de que é o sistema quem ri por último. Ponto final na piada pronta a que é reduzida a liberdade de expressão, ao mesmo tempo incompreensível para usuários ingênuos.
Nesse contexto, podemos falar do caráter de avareza do Twitter. Ele é contenção da expressão e da comunicação, cujo efeito é a histeria ansiosa que surge como escape pela expectativa dos sujeitos do Twitter, os twitteiros, pelo número de followers, retwitters, lists. Na lógica do lucro reduzido à linguagem, tudo é contado como num cofrinho em que cada letra-moedinha é guardada como um ponto no desejo de reconhecimento que sustenta as comunidades da internet. Economizar palavras é o jeito de inscrever-se na ordem simbólica desta comunidade espectral em que dizeres não valem nada no grande varal pan-óptico das frases feitas. O preço da entrada em espaço tão exíguo é pago com a expressão extirpada sob a alegação da síntese partilhada. O troco é devolvido em histeria por mais “seguidores”, discípulos do esvaziamento do vivido diante do modo de expressá-lo.
O Twitter é a forma ideal do nexo entre capital e discurso e, na banalidade do cotidiano, moedinha acessível para vastos grupos que já dominam aparelhos tecnológicos na efetivação de uma era democrática digital. Discurso é, por sua vez, a forma própria do poder que, desde que temos notícia, define tanto formas de governo quanto as mais micrológicas relações humanas. A base do poder discursivo é biopolítica, pois o poder do discurso vem de uma determinada articulação da voz que, como corpo que é sob a aparência de espírito, penetra outros corpos indo reverberar neles como verdade espiritual. O que ouço é sempre incorporado e transformado na alquimia oculta deste espaço existencial chamado corpo. Corpo, no entanto, é aquilo que se perde ou se joga fora nestes tempos digitais em que a ponta dos dedos projeta o mundo. Para os mais otimistas, contudo, a ponta dos dedos pode “cutucar” o sistema com frases perturbadoras.

Será possível escrever poesia depois do Twitter?
O Twitter representa o uso constrangido da linguagem elevado a regra. É a lírica da “piada”. Pode soar divertido para quem não se importa com o parnasianismo do padrão, para quem sente prazer, por outro lado, com o romantismo dos fragmentos, mas pode parecer, para quem pensa na potência revolucionária da linguagem, um mero brete. Cheirando a regras de versificação mesmo que faltem os versos, a estrutura fixa em 140 caracteres sugere um formalismo de metrificação rigorosa. Passar à percepção do caráter sacro da forma não é exagero diante da interdição de um “toque a mais” com o qual não é possível acionar o mágico “send” que permite a visualização das mensagens. Impede-se, assim, a desmedida, a errância que a poesia sempre potencializou como terra de palmeiras onde canta o sabiá e que a internet como campo – e como lugar de exílio em relação à vida – de exercício político veio substituir.
O Twitter parece, como estrutura formal, oferecer o veneno-remédio para o exercício da expressão: limitando-a, ele acaba por permiti-la, mas permitindo-a conclui por impedi-la. Enovela, assim, a sua ação num paradoxo. Desse modo, o Twitter mostra poesia estranha, como uma espécie de lírica do banal, ou a antilírica totalmente desejada pelos “seguidores”. Os pássaros que gorjeiam no Twitter não têm a mesma chance em nenhum outro lugar da internet. O Twitter é, assim, mais que o tempo-espaço da banalidade do poético, a própria
poética da banalidade. Lírica do banal, ele promete a expressão de uma subjetividade apagada pela forma. Haverá ali a esperança de que um dia, para além do espectro do grupo, estejamos finalmente juntos? Mas quem pensa que líricos do vazio querem encontro se engana. A prática que sustenta o Twitter é a garantia da avareza do dizer como um prazer, característica básica de uma cultura cujo desejo de voz e, portanto, de poder foi colonizado.
O cinismo é inevitável na noção de política que surge nesta rede de relações: não partilhamos grandes direitos, mas pelo menos temos alguma coisa em comum: 140 toques. Twitteiros, somos todos Severinos. A poesia como metáfora da esperança de uma vida boa e justa não cabe no Twitter, “cova medida”, ao mesmo tempo que é a “parte que querias ver dividida”. Alerta sobre o espaço que cabe a cada um no infinito latifúndio da internet.


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