Dunker: Vítimas do bullying, adolescentes enfrentam as dificuldades de sobreviver em uma arena de exclusão
Christian Dunker
Nos acostumamos a pensar que o Coliseu, uma das construções mais imponentes de Roma, era um local de sacrifício de cristãos e luta entre gladiadores. Servia ao ideal político do “pão e circo” e à cultura militar, uma vez que a maior parte dos gladiadores era composta de prisioneiros de guerra e bárbaros inaptos para a escravidão. Cada gladiador assinava um contrato de quatro anos durante os quais seria ensinado por um guerreiro mais experiente. Sobrevivendo a este período, seria coberto de glória e honra, recebendo dinheiro suficiente para comprar sua liberdade. Setenta e cinco mil pessoas podiam acompanhar o espetáculo dividido em três partes: pela manhã, armavam-se cenários de florestas com ursos, leões e tigres que seriam abatidos por caçadores. À tarde, representa-vam-se versões teatrais de mitos gregos e romanos. Criminosos e condenados era forçados a fazer, por exemplo, o papel de Prometeu acorrentado, que tinha seu fígado comido pelas feras (voadoras e terrestres), cumprindo assim, como podemos imaginar, cenas de grande realismo. Ao final do dia, vinham as lutas entre gladiadores, divididos em níveis de dificuldade e experiência. A imensa maioria dos candidatos não chegava jamais a lutar em público, fenecendo durante os treinamentos. Menos de um por cento ganhava liberdade e cidadania romana. Mas bastava que um único tivesse alcançado este feito para que o sistema funcionasse.
A parte menos conhecida desta cultura de espetáculo, cujo centro era o Coliseu romano, reside no fato de que tais práticas eram educativas. Crianças eram trazidas regularmente, sob a guarda de seus tutores e mestres, para extrair ensinamentos “práticos” sobre a ordem social e a importância da luta pela sobrevivência. Havia lugares específicos para o público: mulheres no alto (para que o olhar impudente dos gladiadores não gerasse filhos indesejados), imperador ao centro, patrícios ao lado, plebeus abaixo e assim por diante. A distribuição dos ritos também obedecia a uma intenção pedagógica: as caçadas exprimiam a luta do homem contra as bestas da natureza; as representações teatrais, a contenda do homem contra o destino e a lei; finalmente os gladiadores encenavam o conflito de homens contra homens, ou, ainda, a batalha para passar de menos do que um romano para mais do que um cidadão. Pode-se argumentar que os motivos funcionais para o melhor aproveitamento do espaço fizeram os romanos converter o anfiteatro grego, aberto, no teatro romano oval, fechado, mas há mais que isso. Há uma política de fronteiras diferente em cada caso. A fronteira fixa, porém aberta, dos gregos é substituída pela fronteira móvel, mas fechada, dos romanos.
A arena de nossos dias
Para aquele que não veio a Roma fica o convite. Para aqueles que gostariam de reviver a situação do Coliseu sem sair de casa, basta aproximar-se para uma conversa franca com um de nossos adolescentes de classe média. Se você não se fizer nem de imperador nem de patrício, logo começará a reconhecer os perigos e dificuldades para sobreviver ao sistema de exclusão interna no qual o conflito escolar administrado se transformou. Há os populares, que, por direito divino ou nascimento, fazem parte do Senatus Populusque Romanus (SPQR). Há os gladiadores experientes, capazes de se impor pela força ou pela repetência. Há os candidatos a mártir e a grande maioria de nerds que se contenta em escapar das grandes encenações diárias de escárnio e maldizer, suportando sua quota de sacrifício moral por meio de desdobramentos e exercícios “espirituais”, sejam eles baseados em animés japoneses, séries de filmes ou seriados. Descendentes dos antigos CDFs, os atuais nerds não devem ser confundidos com adolescentes que se identificam demasiadamente com os ideais de desempenho e adaptação. Há nerds bonzinhos, há os BVs (bocas virgens), há aqueles que se reúnem em subcomunidades de resistência, em torno da música, do esporte ou de práticas menos auspiciosas. Há os que são diariamente lançados às feras. Um pequeno detalhe, como o uso da blusa por baixo das calças, pode levar ao “suicídio social” representado pela anátema de ser zoado. O termo pode significar seu contrário, andar com roupas zoadas (pronuncia-se zuadas) pode ser sinônimo de personalidade e audácia, bem como falta de gosto em estado terminal.
Para aquele que não veio a Roma fica o convite. Para aqueles que gostariam de reviver a situação do Coliseu sem sair de casa, basta aproximar-se para uma conversa franca com um de nossos adolescentes de classe média. Se você não se fizer nem de imperador nem de patrício, logo começará a reconhecer os perigos e dificuldades para sobreviver ao sistema de exclusão interna no qual o conflito escolar administrado se transformou. Há os populares, que, por direito divino ou nascimento, fazem parte do Senatus Populusque Romanus (SPQR). Há os gladiadores experientes, capazes de se impor pela força ou pela repetência. Há os candidatos a mártir e a grande maioria de nerds que se contenta em escapar das grandes encenações diárias de escárnio e maldizer, suportando sua quota de sacrifício moral por meio de desdobramentos e exercícios “espirituais”, sejam eles baseados em animés japoneses, séries de filmes ou seriados. Descendentes dos antigos CDFs, os atuais nerds não devem ser confundidos com adolescentes que se identificam demasiadamente com os ideais de desempenho e adaptação. Há nerds bonzinhos, há os BVs (bocas virgens), há aqueles que se reúnem em subcomunidades de resistência, em torno da música, do esporte ou de práticas menos auspiciosas. Há os que são diariamente lançados às feras. Um pequeno detalhe, como o uso da blusa por baixo das calças, pode levar ao “suicídio social” representado pela anátema de ser zoado. O termo pode significar seu contrário, andar com roupas zoadas (pronuncia-se zuadas) pode ser sinônimo de personalidade e audácia, bem como falta de gosto em estado terminal.
Há aqueles que não são realmente nem populares nem nerds. Meninas que se “disfarçam” de populares, ou seja, seguem o estilo e consomem o que deve ser consumido, pelo profundo temor de exclusão. Isso se estende ao mercado das trocas de ficantes, quase ficantes, não ficantes e repudiantes. Dissemina-se nas vidas virtuais, nos modos de administração do corpo (massivamente anoréxico) e nas experiências escolares, segundo três lemas fundamentais: (1) sobreviver à exigência do desempenho escolar; (2) conquistar admiração e respeito dos colegas; e (3) discriminar qualquer diferença que possa voltar-se contra si. Quanto a este último aspecto, o filme de Laís Bodanzky As Melhores Coisas do Mundo é cristalino. Ver seu pai separar-se da mãe para iniciar um romance com um aluno é imensamente menos problemático do que ser zoado por isso na escola. A lógica do preconceito é uma operação que começa pela articulação formal de uma diferença, sem qualquer conteúdo ou valência veritativa. É como um apelido, que funciona pela sua eficácia pragmática (pela reação que ele causa), e não pela referência que ele presume. Muito da chamada apatia adolescente de nossos novos gladiadores não é de fato apatia, mas introjeção de uma atitude defensiva de não-reação, ou seja, indiferença forçada a serviço da não-exclusão.
Rompimento da moral da resistência
Até aqui o leitor dirá que não há substancial diferença entre o Coliseu educacional e a vida corporativa de nossa época. Versões do estilo narcísico de nossa época. Aliás, a redescrição que Lacan propõe do narcisismo como sistema de reconhecimento pela imagem é bem mais complexa do que alguém perturbado diante do espelho. As alegorias lacanianas são sempre em torno de nossa arena pessoal, de nosso Coliseu privado, no qual é preciso lutar em várias frentes, escolher a quem impressionar e trocar de lugar do público com o gladiador, do mártir com a besta fera. Ou seja, nossos gladiadores estão sendo bem treinados e os valores que temos aqui são banais, devolvidos em espelho ideológico, na forma do fetichismo ordinário da mercadoria, na prevalência da moral do espetáculo, na lógica da segregação, no cinismo de resultados.
Até aqui o leitor dirá que não há substancial diferença entre o Coliseu educacional e a vida corporativa de nossa época. Versões do estilo narcísico de nossa época. Aliás, a redescrição que Lacan propõe do narcisismo como sistema de reconhecimento pela imagem é bem mais complexa do que alguém perturbado diante do espelho. As alegorias lacanianas são sempre em torno de nossa arena pessoal, de nosso Coliseu privado, no qual é preciso lutar em várias frentes, escolher a quem impressionar e trocar de lugar do público com o gladiador, do mártir com a besta fera. Ou seja, nossos gladiadores estão sendo bem treinados e os valores que temos aqui são banais, devolvidos em espelho ideológico, na forma do fetichismo ordinário da mercadoria, na prevalência da moral do espetáculo, na lógica da segregação, no cinismo de resultados.
Isso explicaria a estranha conivência de nosso sistema escolar, que reconhece nesta zona de experiência os limites internos de sua própria fronteira. Enquanto a fronteira externa, representada pela família, é cuidadosamente alimentada por regulamentos semijurídicos, exposições de motivos, fórmulas morais ao consumidor e requerimentos biopolíticos, a fronteira interna permanece um pequeno campo de concentração entregue à livre iniciativa segregatória. Assim como no Coliseu, cada qual está em seu lugar, pode-se apreciar o espetáculo da luta simulada, mesmo que suas consequências sejam tão reais quanto o suicídio juvenil, no caso japonês, os tiros em Columbine, no caso americano, e a tirania estética, que aparentemente predomina entre nossos pequenos bárbaros. Seria tolice exigir mais “intervenções jurídicas” neste ambiente cuja natureza e constituição se baseiam na suspensão e inversão da inclusão nas leis de cidadania. O caso interessante, e diferente do assédio moral ou sexual do mundo do trabalho, porque ele não é tratável com mais leis, regulamentos e normalização de procedimentos: a moral mostra-se impotente diante da lei, e a lei sem conteúdo moral soa, onipotente, como deslavado cinismo de circunstâncias.
Talvez o bullying em nossas escolas esteja crescendo e a tendência é que cresça mais ainda, como expressão do excesso de administração das formas de vida cujo único limite sancionado seja a lei formal. Dentro das fronteiras internas, não há moral que resista à formação de novos gladiadores. Aliás, a denúncia e o apelo à “justiça comum” representada pelas instâncias escolares competentes significam que a moral da força e da sobrevivência, que forma e define o grupo adolescente, foi rompida, com custos muitas vezes irreparáveis. O problema é interessante porque nos convida a pensar uma solução diferente da habitual transferência de competência moral para uma instância que regulamente o comportamento. É preciso reconhecer a gramática própria na qual se dá o confronto e o sofrimento expresso pelo assédio moral entre adolescentes, o que significará abdicar da facilidade representada pelos nossos meios consagrados e inequivocamente precários de legislar sobre eles, meus caros patrícios e imperadores.
Fonte: Revista Cult on-line. Disponível em: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/08/bem-vindo-ao-coliseu/
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